Subprodutos da produção de alimentos podem ser transformados em insumos de alto valor agregado

Pesquisadores do FoRC estudam o aproveitamento de resíduos da indústria alimentícia para extração de ingredientes funcionais; eles podem enriquecer formulações já existentes ou gerar novos suplementos alimentares

Fronteira do conhecimento

31/10/2019 - É comum ouvirmos que o mundo produz alimentos o suficiente para que ninguém passe fome. De fato, dados da FAO revelam que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou desperdiçadas por ano no globo, o equivalente a 24% de tudo o que é produzido para o consumo humano. Pensando nisso, cientistas do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC) estão buscando agregar valor a subprodutos e resíduos da indústria de alimentos, ricos em compostos bioativos e substâncias benéficas ao organismo humano, e geralmente destinados a atividades como adubação ou nutrição animal. Para tanto, os pesquisadores vêm estudado subprodutos de cultivos como trigo, laranja, maçã, uva, mamão, manga, papaia e chuchu.

O tema foi objeto de um seminário do FoRC no 15º Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN), realizado em agosto, em São Paulo, que contou com a participação dos professores João Paulo Fabi e Neuza Hassimotto, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP (FCF/USP), e da pesquisadora Marcela Albuquerque, todos ligados ao FoRC. Fabi está interessado em agregar valor não somente aos subprodutos e resíduos da indústria alimentícia, mas também a alimentos que, por conta de injúrias mecânicas, adquirem aparência diferente da que o mercado espera e não podem ser comercializados, embora estejam em condições fitossanitárias aceitáveis.

“São alimentos que possuem vitaminas, minerais, determinados metabólitos secundários e também fibras alimentares que podem diminuir a incidência de doenças crônicas não transmissíveis, por exemplo. Quando são armazenados de forma incorreta ou processados, e havendo subprodutos desse processamento, pode ocorrer perda de vitaminas e de compostos fenólicos, mas o mais importante é que as fibras alimentares continuam lá. Porque a fibra alimentar é o que dá estrutura aos vegetais”, explica Fabi, lembrando que os efeitos benéficos das fibras alimentares são reconhecidos por diversos estudos no mundo todo.

Ele foca seus estudos nas fibras solúveis em água, ressaltando que há dois tipos de efeitos benéficos relacionados a sua ingestão: os diretos e indiretos. “As fibras solúveis formam um gel no intestino quando são hidratadas, causam saciedade, podem reduzir a resposta glicêmica e o colesterol. Podem, ainda, ser fermentadas pela microbiota intestinal produzindo ácidos graxos de cadeia curta com reconhecida ação biológica benéfica como, por exemplo, o butirato, que tem efeitos anti-câncer. Esses são os efeitos indiretos das fibras solúveis.”

Mas, segundo Fabi, novos efeitos diretos estão aparecendo. “Esse estudo dos efeitos diretos é meu foco no laboratório. Uma interação direta das fibras solúveis com o epitélio intestinal, que pode ter ação benéfica relacionada à redução da incidência de câncer de cólon, e também ação imunomodulatória, isto é, aumentar a nossa imunidade ou diminuir uma possível inflamação crônica que possa estar ocorrendo no intestino.”

Polissacarídeos e pectinas – Fabi trabalhou com o farelo de trigo, rico em polissacarídeos; com frutos injuriados de chuchu e papaia; e com subprodutos do maracujá. Segundo ele, durante o beneficiamento do trigo, 75% do que entra no processo vira farinha e 25% vira farelo, geralmente utilizado para ração animal.

“O farelo é a parte que fica em volta do endosperma, onde há o amido propriamente dito. É fonte de fibras alimentares, compostos fenólicos e proteínas, que estão fortemente interligados, fazendo com que o farelo seja bastante duro, e dificultando a extração dessas substâncias com tratamento aquoso. Destaco dois polissacarídeos – os arabinoxilanos, que têm reconhecida ação probiótica; e os betaglicanos, que têm ação imunomoduladora. No laboratório, nós fizemos alguns modelos de tratamento usando alta temperatura, alguns tipos de ácidos e compostos básicos, e conseguimos extrair cinco vezes mais arabinoxilanos e betaglicanos do que apenas com o tratamento aquoso”, resume o professor, com a ressalva de que o estudo não foi realizado em escala industrial, mas é um primeiro approach que nenhum outro grupo havia realizado.

De acordo com ele, esses polissacarídeos poderiam ser acrescentados em formulações já existentes ou até mesmo vendidos como suplementos alimentares. “Os próximos passos, entre outros, seriam aperfeiçoar as técnicas de extração desses dois polissacarídeos e compará-los com arabinoxilanos e betaglicanos de outros vegetais e também com betaglicanos de fungos, que já estão disponíveis no mercado.”

A equipe de Fabi estudou ainda as pectinas do papaia e do chuchu, e também o albedo do maracujá, aquela parte branquinha que abriga as sementes. “Esse albedo é rico em pectina, um polissacarídeo bioativo, que atua como uma fibra solúvel. Os benefícios biológicos das pectinas são a imunomodulação e a diminuição do risco de câncer, por conta da fermentação e da produção de butirato. Esses efeitos ocorrem com as estruturas em sua forma natural. Mas existem alguns tipos de modificações químicas que podemos fazer nas pectinas e que podem aumentar determinados efeitos biológicos.”

Ele lembra que as pectinas modificadas de citros já são comercializadas no mercado americano, e que o objetivo da equipe era saber se as pectinas modificadas dos resíduos de maracujá, e das porções não aproveitadas de papaia e chuchu, poderiam ter os mesmos efeitos das que já existem no mercado. “As pectinas têm alto peso molecular, o que pode prejudicar sua atuação no cólon e talvez fazer com que não sejam degradadas de forma correta pela microbiota intestinal. É preciso aplicar tratamentos que degradem tanto quimicamente quanto enzimaticamente, ou mesmo termicamente, as ligações que impedem que os fragmentos de pectinas sejam solubilizados.”

Em modelos in vitro, a equipe conseguiu não somente aplicar esses tratamentos, como fazer com que as pectinas extraídas levassem à diminuição da proliferação de células de câncer colo-retal. Também conseguiu fazer com que, na presença das pectinas, essas células cancerígenas se auto-reprogramassem para aumentar a apoptose (morte celular programada). 

“Uma das características das células de câncer é que elas não morrem. E, com o uso dessas pectinas, conseguimos fazer com as células parassem de se replicar, nos experimentos in vitro. Estamos estudando os mecanismos desse fenômeno. E verificando que, da mesma maneira que as pectinas modificadas de citros e de maçã, as que estamos estudando, além de produzir butirato, também inibem uma proteína chamada galectina-3. Diversos tipos de câncer possuem uma super expressão dessa proteína. Ela é ruim para o nosso sistema porque faz com que as células de câncer se dividam e cresçam mais rapidamente, e diminui a apoptose e a necrose das células de câncer”.

Espaço para pesquisas – A professora Neuza Mariko Aymoto Hassimotto, que trabalha com compostos fenólicos (principalmente flavonoides), lembra que boa parte dos resíduos de alguns setores da agroindústria e da indústria alimentícia já é reutilizada no Brasil, mas que ainda há muito espaço para pesquisas nesse sentido.

“A indústria do suco de laranja é um bom exemplo. Talvez sejam os resíduos mais bem aproveitados da nossa indústria alimentícia. O Brasil, como se sabe, é um dos maiores produtores de laranja e de suco de laranja do mundo. Para obter uma tonelada de suco, é necessário processar 11 toneladas de laranja. Ou seja: são mais ou menos 10 toneladas de resíduo para 1 tonelada de suco. Parece impactante, mas esses resíduos têm bastante destinação: a partir dele se obtém pectina, óleos essenciais, e o farelo que sobra é destinado à alimentação animal. Entretanto, no farelo e na farinha da casca de laranja há ainda substâncias que também têm potencial de aproveitamento. Eles são fontes riquíssimas de polifenóis, que poderiam ser utilizados em diversos segmentos da indústria.”

Ela também cita o caso dos resíduos da produção de suco de maçã. De acordo com ela, de 20% a 40% do total de frutas que entram no processamento do suco se transforma em resíduos, ricas fontes de compostos fenólicos. Na extração do suco, por exemplo, parte dos compostos fenólicos vai para o suco, mas alguns, como a quercetina, permanecem no bagaço, fazendo deste resíduo uma matéria prima rica para a obtenção do flavonoide. A quercetina é reconhecida por apresentar diversas propriedades biológicas: é antioxidante e possui propriedades anti-inflamatórias, o que poderia impactar a saúde de maneira positiva.

Corantes e antioxidantes naturais – Neuza cita ainda as antocianinas, substâncias que dão cor aos frutos vermelhos (amora, framboesa, mirtilo, entre outros) e também à uva, à cebola roxa e ao repolho roxo, que são reconhecidos corantes naturais.

“Elas já são muito utilizadas na indústria de alimentos, em bebidas alcoólicas e não alcoólicas, lácteos, sorvetes, confeitos... A paleta de cores que elas oferecem tem relação com o pH da matriz alimentar: um pH ácido confere maior estabilidade e cor vermelha; um pH mais próximo ao neutro gera uma coloração roxa ou azul e, quando o pH é muito básico, a cor vai se perdendo, devido a alteração na estrutura”, explica ela, revelando que no caso da produção da uva, após a utilização dos subprodutos para a confecção da grapa, sobram ainda resíduos sólidos que poderiam ser utilizados para a fabricação de corantes. “Mas é preciso caracterizar estes compostos, porque as diversas variedades de uvas têm perfis diferentes. A uva da variedade Concord, por exemplo, é rica em antocianinas aciladas, que apresentam maior estabilidade química e, portanto, também da cor.”

Alguns compostos fenólicos também têm ação antioxidante natural, e podem substituir os antioxidantes sintéticos, inibindo a oxidação dos lipídios. “A curcumina é um bom exemplo, já reconhecido. A tendência da indústria, atendendo até um apelo do consumidor, é trabalhar com fontes cada vez menos processadas, aproveitando as características relacionadas a propriedades funcionais e aos benefícios à saúde que elas possam agregar.” 

Bioenriquecimento – Outra maneira de utilizar subprodutos da indústria alimentícia é aplicá-los como substratos para microrganismos como estratégia para bioenriquecer alimentos. Desta forma, o crescimento dos microrganismos promotores do processo pode ser estimulada. A pesquisadora Marcela Albuquerque, pós-doutoranda da FCF/USP e pesquisadora do FoRC, criou uma bebida fermentada à base de soja, bioenriquecida com uma combinação de cepas de microrganismos benéficos produtores de folato. Para estimular a multiplicação desses microrganismos ela testou subprodutos de diversos alimentos, como o okara (oriundo do processamento da soja), e ainda subprodutos de acerola, maracujá, laranja e manga.

“Embora todos os resíduos tenham estimulado os microrganismos a produzirem folato, o resíduo da laranja foi o que mais estimulou a multiplicação e a produção da vitamina pelos microrganismos benéficos quando utilizamos um meio de cultivo suplementado com esses subprodutos. Entretanto, o subproduto da laranja tem sabor residual amargo, o que inviabiliza sua utilização para o desenvolvimento de novos alimentos. O resíduo de acerola, embora não tenha estimulado tanto o desenvolvimento e a produção de folato pelas cepas selecionadas, foi o único que não estimulou o desenvolvimento de microrganismos patogênicos.”

Segundo ela, os subprodutos testados têm potencial para estimular a multiplicação de microrganismos probióticos, que conseguem fermentar as farinhas de frutas administradas e, também, produzir folato. “Testei vários resíduos de fruta e acabei optando pelo maracujá, porque era o que tinha o menor teor de folato. Por ter pouca quantidade da vitamina, a probabilidade do resíduo do maracujá em inibir a produção da vitamina pelas bactérias testadas nos experimentos seria reduzida.”

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Imagem: Marcos Santos/USP Imagens

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