20/12/2019 - Os vinhos orgânicos já podem ser encontrados nos melhores supermercados brasileiros e é muito comum haver, por parte dos consumidores, a percepção de que eles trazem benefícios à saúde, por não conterem aditivos. A definição de “vinho orgânico” varia dependendo do local, porque as leis que regulam sua produção são diferentes em cada país. Mas, como lembra a especialista em enologia Maria Carla Cravero, do Research Centre for Viticulture and Enology (Itália), em um artigo publicado este ano na revista Food Chemistry, o intuito principal é evitar fertilizantes e pesticidas químicos, organismos geneticamente modificados (OGMs) e outros aditivos sintéticos.
“No produto orgânico, usa-se adubo orgânico em vez de fertilizantes químicos; controle biológico de pragas e doenças em vez de agrotóxicos; roçadas em vez de herbicidas. Usam-se plantas cuja raiz ajuda a fixar o nitrogênio para as videiras... enfim, é um processo muito trabalhoso, e isso impacta o preço”, explica Laís Moro, doutora em Ciência dos Alimentos na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP).
De acordo com ela, no Brasil alguns produtos são permitidos na produção da uva para a fabricação de vinhos orgânicos, como, por exemplo, cinza para o combate do fungo; óleos essenciais de plantas e sulfato de cobre (geralmente utilizado na forma de ‘calda bordalesa’, que é sulfato de cobre, cal e água), para proteger as folhas contra fungos – embora pareça contraditório o uso de substâncias químicas em cultivos orgânicos. “Nos últimos 10, 15 anos, houve uma evolução muito grande nesse mercado de produtos para cultivos orgânicos. Hoje, existem vários produtos biológicos que combatem pragas, como, por exemplo, alguns bacilos e outros micro-organismos, e seu uso é permitido por lei aqui no Brasil.” Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), em 2018, a produção de produtos biológicos para controle de pragas e doenças agrícolas cresceu mais de 70% no Brasil.
Entretanto, diz ela, o que gera o apelo de ‘vinho orgânico’ é apenas o cultivo da uva, porque não há normativas regulamentando o processo de produção do vinho orgânico. “Essa certificação é feita no campo. Não diz respeito ao processo de fabricação do vinho. Na legislação, há apenas a orientação geral relativa aos produtos orgânicos, de realizar o processamento em um local separado, e/ou tomar cuidado para não haver contaminação cruzada do produto que não é orgânico.”
Em resumo: o que se considera vinho orgânico, hoje, é a bebida oriunda de uma plantação orgânica de uvas, independentemente do processo de elaboração do vinho. Laís salienta que essa lacuna regulatória não é um ‘privilégio’ do Brasil, mas ocorre em outras partes do mundo. “Nos Estados Unidos, o Departamento de Agricultura – USDA – permite o uso de enzimas de origem vegetal de plantas comestíveis no vinho orgânico. Mas, na União Europeia, a legislação proíbe.”
Uma questão importante, de acordo com Laís, é relativa ao dióxido de enxofre, que auxilia a controlar a microbiota da uva durante a produção do vinho. “Geralmente, nos vinhos orgânicos, usa-se menos o dióxido de enxofre em comparação aos vinhos tradicionais, muito embora, como já se disse, existam lacunas na legislação a esse respeito. Alguns estudos conectam o dióxido de enxofre à dor de cabeça, à ressaca, o que é uma questão polêmica, e não há conclusões definitivas sobre esse elemento ser o causador das dores de cabeça. Então, se você pegar uma garrafa de vinho orgânico e quiser saber se há esse tipo de conservante, leia o rótulo, e veja se ele traz os dizeres ‘contém INS 220’, ou ‘conservante PV’".
A regulação do uso do dióxido de enxofre também muda de país para país. “Aqui no Brasil para vinhos orgânicos é permitido até o limite de máximo de 0,01g/100 g. Nos Estados Unidos é permitida uma concentração total de dióxido de enxofre. Na União Europeia essa concentração muda do vinho tinto para o branco e o rosé. Como são técnicas novas, ainda estão sendo implementadas e, conforme os estudos evoluem, vão ocorrendo modificações nas leis.”
Embora haja diferenças entre os países sobre o que se considera um produto “orgânico”, políticas públicas de entendimento mútuo podem ajudar a transpor essa barreira. Foi o que fizeram Brasil e Chile em abril de 2019, ao colocar em prática um acordo de equivalência de produtos orgânicos entre os dois países. Assinado em setembro de 2018, o acordo estabelece que o Chile vai reconhecer a certificação feita pelo Brasil para comprar produtos orgânicos brasileiros, e o Brasil aceitará a certificação dos chilenos. A primeira leva de vinhos orgânicos chilenos importados depois do acordo entrou no país em julho.
Diferenças – Segundo Laís, diferenciar química e sensorialmente os vinhos orgânicos dos tradicionais ainda é difícil. “Há diversos trabalhos acadêmicos comparando vinhos tradicionais e vinhos orgânicos, por diversos métodos, principalmente na Europa, que produz a maior parte dos vinhos orgânicos consumidos mundialmente.”
Em 2004, quatro autores italianos analisaram 23 vinhos comerciais da Itália feitos de uvas orgânicas e não orgânicas. Os resultados das análises químicas (álcool, açúcar, acidez total e volátil, dióxido de enxofre total ou ausência dele, e pH) e sensoriais dos orgânicos não mostraram muita diferença com relação aos vinhos convencionais.
Pesquisas têm mostrado que as uvas orgânicas apresentam taxas mais altas da enzima polifenol oxidase (PPO) do que as convencionais. Na Espanha, em 2005, estudos publicados por outros quatro pesquisadores com o vinho feito da variedade Monastrell mostraram maior atividade de PPO em vinhos orgânicos do que nos convencionais, sugerindo que essa substância poderia ser futuramente usada como um marcador para a diferenciação entre uvas cultivadas organicamente e as cultivadas tradicionalmente.
Uma outra investigação realizada na Espanha em 2009 com vinhos xerez feitos de uvas da variedade Pedro Ximenez (uma casta de uvas brancas), permitiu distinguir com sucesso os vinhos orgânicos dos convencionais por meio dos perfis dos compostos aromáticos de ambos, cujos resultados foram avaliados estatisticamente por meio de análise multivariada (PCA). O estudo mostrou que os vinhos das uvas orgânicas tinham perfis aromáticos semelhantes aos convencionais, mas com intensidades mais baixas.
“No geral, quando são feitos testes sensoriais cegos, do tipo em que se dá ao voluntário uma amostra de vinho orgânico e uma de vinho tradicional, dificilmente se consegue diferenciar um do outro. É preciso um treinamento para diferenciá-los em nível sensorial.”
Laís também cita um artigo publicado em 2016 na revista Scientia Horticulturae pelas biólogas Caroline Provost, do Centre de Recherche Agroalimentaire de Mirabel, e Karine Pedneault, do Centre de Développement Bioalimentaire de Québec, ambos no Canadá. De acordo com as autoras, embora a suposição geral seja de que as videiras orgânicas sofrem mais estresses bióticos do que as videiras convencionais e, portanto, deveriam produzir taxas mais altas de metabólitos secundários, incluindo compostos fenólicos, estudos mostraram que os vinhos produzidos a partir de uvas orgânicas e convencionais colhidos no mesmo local e fermentados com protocolo semelhante apresentaram diferença insignificante em seus perfis fenólicos. Diz o estudo que, no início, os vinhos orgânicos apresentavam níveis significativamente mais altos de antocianina (344 mg / L) e trans-resveratrol-3-o-glucosídeo (14 mg / L) do que os convencionais (296 mg / L e 12 mg / L, respectivamente), mas após seis meses de prateleira, essas diferenças não eram mais detectáveis.
“Ou seja: havia diferenças detectáveis no vinho jovem, recém-produzido. Conforme ele envelhecia, essas diferenças iam desaparecendo. Algumas indústrias que trabalhavam com métodos tradicionais e agora produzem orgânicos alegam que são necessários aproximadamente 15 anos até que a empresa saiba lidar com essa uva orgânica. Por exemplo: a barrica que se vai usar para envelhecer esse vinho pode já ter sido usada antes para armazenar um vinho tradicional e, neste caso, é quase certo haver contaminação cruzada. Então, é preciso um tempo de adaptação: tanto do vinhedo, que pode ter sido tratado de forma tradicional lá atrás, com agrotóxicos e químicos, quanto do processo produtivo do vinho.”
Biodinâmicos e naturais – Além dos orgânicos, os vinhos biodinâmicos e os vinhos naturais também entraram no radar dos que buscam uma vida mais saudável. Mas, como lembra Maria Carla Cravero em seu artigo, a despeito do crescente interesse mercadológico que esses apelos despertam, a informação científica sobre as diferenças organolépticas entre os vinhos convencionais, orgânicos e, sobretudo, biodinâmicos, permanece escassa e o tema requer análises mais aprofundadas.
“Os vinhos biodinâmicos são produzidos com uvas cultivadas de acordo com os princípios da agricultura biodinâmica, desenvolvida por Rudolf Steiner – o mesmo estudioso que desenvolveu a pedagogia Waldorf e a medicina antroposófica. A biodinâmica tem muito em comum com as abordagens orgânicas, que enfatizam o uso de compostagem e de esterco e a exclusão de produtos químicos artificiais das lavouras”, explica Laís.
Segundo ela, trata-se de uma filosofia, mais do que meramente um processo produtivo. “A ideia é que o alimento é fonte de vitalidade: por isso, a biodinâmica prega que é preciso cuidar do processo e do cultivo do fruto. Na agricultura biodinâmica são levados em conta, por exemplo, o calendário lunar para orientar o manejo das plantas e do solo, as estações do ano.... Como no cultivo de orgânicos, não se pode usar químicos, mas também não se usa trator, apenas a tração do cavalo, do boi, ou a enxada, pois a máquina é pesada e compacta a terra, pode danificar a raiz...”
Se nos vinhos biodinâmicos o “pulo do gato” é o cultivo da uva, nos vinhos chamados de “naturais” é o processo produtivo da bebida que conta. “Neste caso, a uva pode ser cultivada pelo método tradicional, com uso de herbicidas e tudo mais, ou pelo método orgânico. Mas, no geral, o vinho natural acaba sendo feito com uvas cultivadas de forma orgânica ou biodinâmica, até para salientar as características e ‘tipicidade’ do produto. Uma das principais características dos vinhos naturais é que eles não utilizam as leveduras compradas, adquiridas fora – em sua maioria, Saccharomyces. A fermentação é feita com as leveduras naturais da superfície da própria uva, que chamamos de “leveduras indígenas”. Elas são o resultado da interação com o solo e o ambiente, e o vinho resultante salienta esses processos: muitas vezes eles não passam nem por filtragem, são mais espessos. A flora que envolve essas uvas vai proporcionar um vinho único em cada ano (vindima)”
Laís afirma que algumas vinícolas realizam o processo de fermentação na pedra. “Cava-se um buraco na pedra, coloca-se a uva lá e o processo de fermentação é feito lá dentro. Pode também ser feito num tanque oval de cimento. No método tradicional, algumas vinícolas trabalham com micro-oxigenação: é inserido um pouco de oxigênio na bebida, para incentivar o desenvolvimento de algumas reações naturais do vinho. E esse processo é controlado. Nos vinhos chamados naturais, não se faz isso. A entrada de ar se dá por meio dos poros desses tanques.”
Esses processos geram um vinho completamente diferente, segundo Laís. “Por esse processo, não se obtém um produto ‘uniforme’, e é exatamente esse o diferencial desses vinhos: cada ano é um ano, cada safra é uma safra, e ela é avaliada como algo original, com características únicas. São vinhos singulares, muitas vezes com valores elevados, porque são únicos.”
Neste caso, como no caso dos orgânicos, o custo de produção é bastante elevado, e isso acaba passando para o preço final do produto. “São produtos para um público ainda restrito: pessoas que têm alergia ao dióxido de enxofre, por exemplo, ou pessoas que estão preocupadas com o meio ambiente, apreciadores e amantes de vinho.”
Fique atento! Alguns tipos de uvas são mais resistentes em comparação à espécie europeia Vitis vinifera, que origina os chamados vinhos finos. São variedades conhecidas como “americanas”, que pertencem à espécie Vitis labrusca, e também variedades híbridas desta espécie com outras. A Vitis labrusca é utilizada principalmente na produção dos chamados vinhos de mesa e de sucos, além do consumo in natura. Laís explica que o cultivo da Vitis labrusca para elaboração de orgânicos acaba sendo mais econômico com relação a cultivares menos resistentes. Segundo ela, diversas empresas estão investindo em Vitis labrusca para fazer vinhos orgânicos, o que soa contraditório, pois o vinho originado não é um vinho fino, mas um vinho de mesa. E o consumidor deve ficar atento. Caso tenha dúvida, além do rótulo com o selo que indica que aquele é um produto orgânico, cheque o preço: o vinho orgânico de Vitis labrusca será geralmente mais barato do que o de Vitis vinifera. O que dá a mais pessoas a chance de conhecer um vinho cultivado de uma forma diferente.
Imagem: Luis Lessing por Pixabay">Pixabay
Fontes adicionais:
Cravero, Maria Carla. Organic and biodynamic wines quality and characteristics: A review. Food Chemistry, 2019.
Provost, Caroline; Pedneault, Karine. The organic vineyard as a balanced ecosystem: Improved organic grape management and impacts on wine quality. Scientia Horticulturae, 2016.
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