Consumo do ghee é legado cultural, mas há controvérsia sobre seus benefícios nutricionais

Você sabia?

Tradicionalmente muito consumido na Índia e no Paquistão, o ghee é uma espécie de manteiga clarificada. No ocidente, passou a ser consumido por pessoas que procuram seguir uma dieta mais natural e saudável, pois elas acreditam que o ghee tenha propriedades anticarcinogênicas, antialérgicas e anti-inflamatórias, além de altos teores de vitaminas A, D, E e K. Segundo a engenheira de alimentos Juliana Ract, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, há controvérsias sobre os benefícios do consumo do alimento. “Encontra-se literatura tanto contra como a favor do consumo do ghee. Eu, como profissional da área, vejo da seguinte forma: o ghee é a gordura pura do leite”, resume a especialista em lipídios.

Ela conta que, atualmente, o processo mais utilizado para obtenção do ghee é a partir da manteiga comum (nos primórdios, na Índia, ele era feito a partir do leite). “A manteiga, que tem 80%, 82% de gordura, é colocada para derreter. Os 18% ou 20% que restam separados nesta etapa são uma mistura de água e sólidos do leite. Quando ela é levada ao fogo, o que sobra de água vai sendo evaporado conforme o produto é aquecido.”

Segundo Juliana, as proteínas e os açúcares também são retirados durante o processo. “Quando a manteiga é aquecida, forma-se uma espuma por cima, que vai sendo retirada durante o preparo. Toda espuma é instável, é uma mistura de ar com um líquido. Ela só fica estável porque há moléculas ali para mantê-la assim. Acreditamos que, no caso do ghee, essas moléculas sejam as proteínas e o açúcares do leite. Ou seja: quando tiramos a espuma, estamos retirando esses componentes. No final, fica só a gordura mesmo.”

De acordo com a tabela de composição de alimentos da Austrália, o ghee tem 99,9% de lipídios. Cada 100 gramas do produto contêm 65g de ácidos graxos saturados e 290 mg de colesterol. A manteiga tem 81,5% de lipídios, sendo que cada 100 gramas contêm 53,8 g de gordura saturada e 146 mg de colesterol.

Para os adeptos do ghee, naquela espuma estariam as “toxinas” do leite. Muita gente defende que o consumo de leite (de vaca, cabra ou búfala) pelos seres humanos não é algo natural, já que somos os únicos mamíferos a consumir leite de outros mamíferos. “Particularmente, nunca vi um estudo científico que comprovasse essa teoria. Existem, isso sim, pessoas alérgicas ao leite, o que é outra coisa. Não considero o leite de vaca um produto tóxico para uma pessoa não alérgica. Quem defende esse raciocínio alega que o ghee é bom porque retém só os lipídios. Acontece que os lipídios do leite não são tão saudáveis assim. Eles têm colesterol e um nível muito alto de gordura saturada: algo em torno de 60% a 70%.” 

Oxidação – Uma das vantagens apontadas pelos que defendem as propriedades benéficas da iguaria é a sua vida de prateleira longa, sem o uso de refrigeração nem conservantes. A esse respeito, Juliana levanta uma questão: a oxidação. “Durante o preparo do ghee, a fase de aquecimento dura um bom tempo. E a combinação calor e oxigênio gera oxidação no óleo, uma reação em cadeia que começa no momento do preparo e tende a continuar durante o armazenamento.” Ela explica que a mesma coisa pode acontecer com a manteiga de garrafa, que tem uma tendência a oxidar. “Neste caso, o consumo tem um valor cultural, é um hábito: no Nordeste brasileiro, consome-se a manteiga de garrafa mesmo oxidada, rançosa, mas é a tradição. Creio que o mesmo acontece com o ghee.” 

Segundo Juliana, alguns dos poucos estudos científicos existentes sobre o ghee propõem justamente a adição de diversos tipos de antioxidantes naturais para prevenir a oxidação do produto. “Isso prova que ele não é assim tão estável a ponto de ter vida de prateleira longa sem refrigeração e sem conservantes, como se defende. Trata-se de uma gordura bruta, sem refino, obtida à custa de um longo processo térmico com exposição do produto ao oxigênio do ar. Ela só não oxida mais rápido por ser altamente saturada.”

Na opinião da professora, exceto pela questão cultural, não há aspectos positivos no consumo diário ou frequente do ghee. “O que vejo são aspectos negativos. Agora, não estou dizendo que as pessoas não possam consumir o ghee de jeito nenhum. Se você vai a um restaurante indiano de vez em quando, é claro que vai comer, vai experimentar. Tudo é uma questão de bom senso. Com moderação, pode-se comer de tudo um pouco.”

Juliana afirma que há poucos estudos científicos sobre o ghee, apesar do consumo estar se tornando mais popular (também por conta da popularização da medicina Ayurvedica), e relativiza os apelos mais comuns sobre os possíveis benefícios do alimento. “Provavelmente, a crença de que ele tem propriedades antioxidantes, antialérgicas e anti-inflamatórias vem do fato da gordura do leite ser uma fonte rica de ácido linoleico conjugado (ALC). E o ALC tem essas propriedades. Entretanto, a quantidade deste ácido graxo é muito pequena no ghee e, considerando que seu consumo não deva ser estimulado, a ingestão do ALC seria tão baixa que provavelmente nem promoveria os efeitos desejados.”

Ela lembra que há uma versão vegetal do ghee, chamada de vanaspati, que é uma mistura de óleos hidrogenados de sementes de girassol, amendoim, soja, canola e palma. É usado principalmente para frituras e para a preparação de molhos, doces e sobremesas. “Esse mix de óleos tem alto teor de gordura trans. Quando veio à tona a polêmica envolvendo as gorduras trans, a gordura hidrogenada foi sendo substituída pelo óleo de palma, o que reduziu a necessidade de hidrogenação e acarretou uma consequente queda do nível de ácidos graxos trans”, diz Juliana. O vanaspati é muito consumido por veganos e vegetarianos, que não ingerem alimentos de origem animal.

Curiosidade: De acordo com a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), o ghee é originário do nordeste da Índia. A expressão ghee deriva do sânscrito antigo ghr (que significa “brilhante” ou “deixar brilhante”), sendo citada várias vezes nos Vedas – as quatro escrituras básicas associadas à cultura e à religião Hindu. Segundo a Enciclopédia Britânica, os primeiros escritos em sânscrito atribuem muitas qualidades medicinais ao ghee, tais como melhorar a voz e a visão e aumentar a longevidade.

Fontes: 

GUNSTONE, F.D. Oils and Fats in the Food industry. Oxford, Blackwell Publishing, 2008, capítulo 8.

NUTTAB 2010 Online Searchable Database. Disponível em:              http://www.foodstandards.gov.au/science/monitoringnutrients/nutrientables/nuttab/pages/default.aspx

Imagem: Hartej.hundal (Own work), via Wikimedia Commons
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1b/Desi_ghee1.JPG

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