29/04/2021 - Ainda hoje, mesmo entre os pediatras, persiste o mito de que o bebê não deve ingerir certos tipos de alimentos por causa do risco de desenvolver alergia alimentar. Não é, entretanto, o que mostram os estudos científicos. “A partir dos seis meses, quando se introduz a papinha salgada, o bebê deve começar a comer todos os tipos de alimentos, inclusive aqueles potencialmente alergênicos, pois um dos fatores de risco à alergia alimentar é justamente a ausência de contato com alguns alimentos nessa fase da vida”, afirma a farmacêutica, Gabriela Justamante Händel Schmitz, doutora em Ciência dos Alimentos pela Universidade de São Paulo e ex-pesquisadora do Centro de Pesquisa em Alimentos (Food Research Center – FoRC).
Schmitz explica que uma alimentação variada, preferencialmente in natura, tem uma influência importante na formação de uma microbiota intestinal equilibrada. Essa, por sua vez, tem um papel relevante no mecanismo de tolerância aos alimentos potencialmente alergênicos. “A microbiota intestinal atua como uma barreira, evitando a passagem das proteínas alimentares [as responsáveis pela alergia] para a corrente sanguínea, reduzindo a chance de uma reação alérgica”, explica.
Mas pode comer de tudo? “Devem ser evitados alimentos industrializados, principalmente os que contém muito açúcar ou gordura, que não contribuem para a formação de uma microbiota equilibrada e podem conter substâncias que potencialmente induzem à alergia, como conservantes e corantes químicos”, afirma Schmitz. De acordo com a Sociedade Brasileira de Alergia e Imunopatologia (ASBAI), as reações adversas aos conservantes, corantes e aditivos alimentares são raras, mas não devem ser menosprezadas. Há relatos de reações alérgicas ao corante artificial tartrazina [pigmento sintético), aos sulfitos [conservantes] e ao glutamato monossódico [realçador de sabor].
“Obviamente que para essa fase da vida existem alimentos proibidos, mas por outras razões”, acrescenta. Exemplos: o açúcar, até 2 anos de idade, e o mel, até 1 ano. O açúcar, seja branco, mascavo, cristal, demerara etc., devido aos riscos do desenvolvimento de obesidade e doenças correlacionadas, e de a criança dar preferência a alimentos doces e deixar de lado os salgados, que fazem parte das principais refeições. Já o mel, pelo risco de conter esporos de Clostridium botulinum – bactéria cuja toxina desencadeia a chamada doença do botulismo infantil. A microbiota intestinal dos bebês, ainda em formação, não é capaz de impedir a germinação dos esporos dessa bactéria.
Gatilhos multifatoriais – Schmitz destaca que a questão hereditária tem um peso grande na tendência de ser ou não alérgico. “Filhos de pais com alergia a frutos do mar, por exemplo, têm 70% de chance de serem alérgicos a esses alimentos.” Assim, se houver histórico na família, a fase de introdução de alimentos deve ser sempre acompanhada por um pediatra especializado em alergia.
Quando não há pré-disposição genética, a forma correta de introduzir uma alimentação variada após os 6 meses de idade é oferecer alimentos novos progressivamente, inclusive os potencialmente alergênicos, até que o bebê complete um ano de idade. Isso possibilita acompanhar a aceitação do alimento pelo bebê e, principalmente, verificar se há alguma reação alérgica de fato. Schmitz reforça: “Neste caso, não é a exposição ao alimento que dá origem à alergia, mas sim ao fato de o bebê já ser alérgico às proteínas, por fatores hereditários ou não.”
E quais são os fatores não hereditários? Higiene exacerbada, falta de vitamina D, sexo [meninos tendem a ter mais alergia do que meninas], etnia [crianças asiáticas e negras são mais propensas], dermatite atópica, consumo reduzido de ômega 3 e antioxidantes, ingestão de alérgenos tardia e uso exagerado de antibióticos. “A quebra dos mecanismos de defesa do trato gastrintestinal, por exemplo, pelo uso de antibióticos exacerbado, pode estar associada ao desencadeamento futuro de alguma alergia alimentar. Daí a importância de propiciar condições favoráveis para uma microbiota intestinal saudável, pois ela é capaz de minimizar a passagem das proteínas alergênicas”, reforça.
Segundo Schmitz, sabe-se que de 1% a 2% das proteínas dos alimentos conseguem ultrapassar a barreira da mucosa gastrintestinal e entrar na corrente sanguínea, onde poderá ocorrer ou não o que se chama de fase de sensibilização. É quando a proteína entra em contato com diversos tipos de células e, caso o paciente seja suscetível a ela, o sistema imunológico é ativado, propiciando o processo alérgico. “A partir daí, quando houver um segundo contato com a proteína, o organismo passa a liberar diversas substâncias, como histaminas, leucotrienos, citocinas e prostaglandinas, que irão gerar os sintomas alérgicos. Isso pode ocorrer quando não houve contato com o alimento antes de 1 ano de idade”, explica.
Reações alérgicas – Se os pais notarem qualquer reação alérgica no bebê durante a introdução de alimentos novos, além de procurarem ajuda médica imediatamente, devem suspender o alimento o qual eles suspeitam que possa ter causado a alergia. A reação alérgica pode ocorrer com qualquer quantidade ingerida do alimento. Os sintomas podem ser locais (coceira, vômito, dor abdominal, náusea) ou sistêmicos (urticária, queda da pressão arterial, edema de glote, anafilaxia).
“Há casos severos em que o bebê não pode nem tocar ou inalar o cheiro do alimento alergênico, mas esses são mais raros.” Segundo ela, os alimentos que mais causam alergias na população são: leite, ovos, trigo, soja, peixe, crustáceos, amendoim, castanhas e gergelim. Além disso, há cada vez mais casos de crianças alérgicas a frutas. Em menores de 3 anos, a prevalência é maior que 11,5%. (Saiba mais sobre alergias a frutas neste link).
A literatura científica mostra que a alergia alimentar é mais comum em crianças (8%) em relação aos adultos (5%). Segundo a pediatra Patrícia Salles Cunha, especializada em alergia e imunologia de crianças e adultos, em muitos casos os sintomas da alergia surgem no primeiro ano de vida e desaparecem naturalmente com o passar do tempo, com dois ou três anos de idade.
Imunoterapia – Segundo ela, quando a alergia persiste, há duas formas de conduzir o problema: continuar suprimindo o alimento da dieta da criança, o que muitas vezes é inevitável devido à contaminação ou ingestão acidental do alérgeno, ou recorrer à imunoterapia, quando for indicada pelo médico. Trata-se de fazer um processo de dessensibilização do organismo em relação à proteína alergênica. O tratamento é sempre feito com acompanhamento médico, geralmente em ambiente hospitalar ou clínicas com estrutura adequadas, de modo que o paciente receba pronto atendimento caso tenha uma reação alérgica grave.
Existem dois tipos de imunoterapia. Uma é a criança ingerir, em intervalos regulares, minúsculas quantidades da substância alergênica diluídas no leite. Outra é fornecer à criança alimentos que contenham a proteína alergênica, porém assados. “Uma criança pode ter alergia a leite in natura, mas seu organismo tolera um pedaço de bolo que contenha esse ingrediente. Isso ocorre porque, ao assar um alimento, a proteína tem sua estrutura modificada, de forma que essa passa a ser tolerada pelo organismo”, explica.
Essa estratégia de imunoterapia, chamada de baked (assado, em português), já teve sua eficácia comprovada, mas falta saber em qual dimensão. Cunha vem pesquisando isso junto a pacientes com alergia a leite e ovo, em seu doutorado no Hospital das Clínicas de São Paulo. “Nosso objetivo é saber com qual alimento e qual quantidade de proteína processada deve-se iniciar o tratamento e o quanto o mesmo acelera ou não o processo de tolerância, isolando dos casos em que a alergia iria desaparecer naturalmente.”
Ela ressalta que a dessensibilização e o baked não são indicados para todos os pacientes. Só uma avaliação médica, feita por especialista na área, pode definir a necessidade.
A pediatra reforça a importância de se introduzir cedo alimentos variados e naturais na dieta do bebê, para propiciar uma microbiota intestinal saudável. E defende também que isso ocorra entre os seis meses e um ano de idade. “Uma prática pouco comum é submeter a criança à exposição precoce aos alimentos. Ou seja, antes dos seis meses. Há pesquisas que comprovaram a eficácia desta estratégia na prevenção de alergia relacionada ao amendoim. Obviamente que se trata de uma abordagem excepcional, mas serve de exemplo para mostrar que o caminho para diminuir a incidência de alergias é na direção de expor os bebês a diversos alimentos na primeira fase da vida.”
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