Substitutos da carne podem não ser tão sustentáveis e saudáveis quanto se imagina

No caso dos análogos de origem vegetal, maiores desafios são textura e teor proteico; no caso da “carne cultivada”, uso intensivo de energia e necessidade de adição de substâncias de origem animal são alguns itens da lista.

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05/05/2020 - A discussão sobre o consumo ou não de carne ganhou outros contornos depois da emergência da preocupação com as mudanças climáticas. Acumulam-se evidências científicas de que não será possível manter o consumo de carne no atual patamar daqui a algumas décadas, por conta dos efeitos da conversão da terra em pastagens e dos impactos dos próprios bovinos, que são emissores de metano – um gás de efeito estufa. Cientistas e startups no mundo todo tentam encontrar análogos de origem vegetal, para atender vegetarianos e veganos, e também produzir “carne” em laboratório para atender os carnívoros, argumentando menor impacto ambiental. As opções na mesa são muitas, mas os desafios também.

“Além das especificidades do sabor, tecnicamente o grande desafio no desenvolvimento de análogos de carne de origem vegetal é a textura. Os ingredientes derivados da soja e ricos em proteínas são funcionais, mas as outras fontes proteicas disponíveis ainda precisam de desenvolvimento para serem otimizadas. Acrescento que, sob o aspecto microbiológico, a microbiota presente em produtos vegetais é distinta daquela presente em produtos animais, especialmente o perfil de deterioração microbiana, portanto estudos ainda são necessários, principalmente em relação aos produtos comercializados resfriados”, explica Ana Lúcia Silva Corrêa Lemos, pesquisadora do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.

Ela subdivide as categorias de análogos ou substitutos da carne em função da matéria-prima como: ricos em proteínas de fontes não vegetais (fungos, insetos, algas, cogumelos); ricos em ingredientes proteicos de origem vegetal (proteína de soja e de ervilha, e glúten); e elaborados com leguminosas (grão de bico, feijão) ou hortaliças (cenoura, berinjela, inhame, por ex.).

Segundo Ana Lúcia, o hambúrguer é o produto com maior espaço no nicho de mercado dos análogos de origem vegetal. Comercializado congelado, sua vida útil é estabelecida com base nas alterações sensoriais durante a estocagem. “As salsichas disponíveis também têm sido comercializadas congeladas, pois a manutenção da textura nos produtos resfriados ainda é um obstáculo, especialmente entre os produtos veganos à base de berinjela, cenoura, inhame e grão de bico – exceção feita àqueles à base de soja”, revela a pesquisadora, que também é diretora do Centro de Tecnologia de Carnes do Ital e integra a equipe do recém-criado Centro de Inovação em Proteína Vegetal do órgão (PRO-VEG).

Produção e teor proteico – Ana Lúcia esclarece que, após a obtenção do ingrediente fonte de proteína, suas propriedades funcionais são modificadas por um método físico, geralmente por extrusão. “Os produtos análogos são elaborados com esses ingredientes modificados fisicamente, para melhorar a textura. Após a hidratação da fonte de proteína e do acréscimo dos demais ingredientes e aditivos, segue-se com os mesmos processos usados pela indústria frigorífica para obtenção dos produtos cárneos, eventualmente com alguns ajustes.”

Quanto ao teor proteico desses alimentos, há diferenças, de acordo com a matéria-prima usada. “Existem no mercado salsichas à base de berinjela, cenoura, inhame etc., que apresentam formato similar ao dos produtos cárneos, mas têm baixo teor de proteína, porque são fontes pobres desse nutriente”, afirma a pesquisadora. Por outro lado, produtos análogos elaborados com ervilha, soja e glúten, por exemplo, geralmente apresentam teores de proteína similares aos encontrados nos produtos cárneos (nos hambúrgueres e salsichas de carne, o teor mínimo de proteína exigido é de 15% e 12%, respectivamente). “Vale ressaltar que, embora os teores possam ser similares, a qualidade da proteína vegetal é inferior à proteína da carne por diversos fatores, como digestibilidade e composição de aminoácidos”, acrescenta Ana Lúcia.

Ela reitera que a substituição das proteínas animais por vegetais geralmente requer que a pessoa coma diferentes proteínas de origem vegetal para se manter adequadamente nutrida. “A soja é a proteína vegetal que mais se aproxima à da carne em relação à composição de aminoácidos, mas, além das proteínas, há outros compostos que só são encontrados nas carnes. São vitaminas, minerais, entre outros componentes menores que estão sendo bastante estudados, como o ácido linoleico conjugado, a carnitina e a anserina.”

“Carne” cultivada? – Outra tendência que promete virar do avesso o mercado dos substitutos da carne é o cultivo de células musculares de bovinos em laboratório. Segundo Viviane Abreu Nunes Cerqueira Dantas, professora livre docente no curso de Biotecnologia da USP, o estado da arte dessa tecnologia, hoje, não permite afirmar que haverá uma diminuição do uso de produtos de origem animal no curto prazo. Viviane trabalha com cultura de células para produção de ‘pele de laboratório’ (ou pele sintética), utilizada em medicina regenerativa e em testes de cosméticos, entre outros.

Segundo ela, várias empresas têm avançado nessa questão e há muito dinheiro sendo aplicado no desenvolvimento de produtos obtidos em laboratório. Quais são os problemas, até agora? “Bem, extrair a célula do animal e multiplicá-la é relativamente simples, e não gera polêmicas relativas à sustentabilidade, já que não é necessário abater o animal para retirar as células, apenas fazer uma biópsia. Na escala industrial, essas células são cultivadas em um biorreator, depois geram fibras musculares que são processadas e transformadas em ‘carne de laboratório’. Mas, para que se multipliquem, é necessário adicionar uma mistura de aminoácidos, pois as proteínas são construídas a partir deles. Acontece que esses aminoácidos são, basicamente, extraídos de tecidos animais – unha, cascos, couro... Ou seja: para cultivar essas células em laboratório, ainda não conseguimos prescindir de tecidos animais.”

Ela explica que, tradicionalmente, usa-se um soro fetal bovino para prover os fatores de crescimento para as células em cultura. “Cientistas, startups e pesquisadores estão em busca de um soro de origem vegetal. O Santo Graal dessa indústria, por assim dizer, é investir no desenvolvimento de um soro vegetal. Que eu saiba, ainda não há nada do gênero no mercado, nenhum que consiga prover todos os fatores necessários para cultivos celulares in vitro.”

Viviane aponta, ainda, que as culturas produzidas em laboratório são, geralmente, bidimensionais. “Para formar algo como um hambúrguer, que tem três dimensões, é necessário dar um arcabouço para as células. Hoje em dia várias substâncias podem ser usadas com esta finalidade, como a gelatina de peixe ou colágeno, de origem bovina, que funcionam como suportes biomiméticos e simulam o ambiente natural da célula para que ela prolifere nessa configuração 3D. Podem ser utilizadas técnicas mais elaboradas de engenharia de tecidos, conforme o tipo de produto que se quer obter lá na ponta. Já existe uma empresa brasileira em Minas Gerais desenvolvendo esse tipo de tecnologia.”

Por fim, há ainda a questão do uso de antibióticos. “Há muita crítica sobre a quantidade de antibióticos recebida pelo boi ‘no pasto’. Mas não creio que o produto de laboratório vá prescindir deles. Nas células que cultivo tenho de usar altas quantidades de antibiótico, porque há várias bactérias no ambiente, e as culturas estão sujeitas à contaminação. Elas são cultivadas a 37 °C, em ambiente úmido, rico em nutrientes, e com pH próximo do neutro, o que é muito favorável para a proliferação de bactérias. Impossível cultivá-las, ainda, sem o uso de antibióticos em larga escala”, ressalta. Ela também levanta a questão da qualidade nutricional da carne vermelha, que contém proteína, ferro e vitamina B12, entre outros nutrientes. “Temos de nos perguntar se esse produto vai ter a mesma qualidade nutricional...”

Pegada ambiental – O professor associado da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP (FZEA/USP), Marco Antônio Trindade, chama a atenção para um estudo publicado em 2014 por quatro cientistas do German Institute of Food Technologies comparando análises do ciclo de vida do frango, de análogos vegetais e daqueles à base de micoproteínas (oriundas de fungos), de análogos à base de leite e glúten, e da célula de carne cultivada, na tentativa de estabelecer a pegada ambiental das diferentes opções.

O trabalho concluiu que os maiores impactos para o ambiente foram os da ‘carne’ cultivada em laboratório e dos análogos à base de micoproteínas, que têm alta demanda por energia para cultivo. A criação do frango e os substitutos da carne à base de leite e de glúten tiveram impacto médio; e o menor impacto ficou com os substitutos à base de insetos e de farelo de soja.
“Eu acredito na importância de termos essas alternativas. Sou da área de carne, gosto de carne, acho que ela tem coisas boas e ruins. Há de fato problemas relacionados à sustentabilidade, ao efeito estufa e ao uso da terra. Mas há setores se aproveitando dessas características críticas para fazerem propaganda dos análogos de forma equivocada. É desejável haver alternativas para pessoas que não querem, por exemplo, consumir produtos animais. Mas essas opções têm sido anunciadas como sendo extremamente mais sustentáveis, além de mais saudáveis, do que aquilo que se quer substituir: ou seja, a carne obtida tradicionalmente. Entretanto, pode não ser bem assim.”

Sobre a baixa pegada ambiental das proteínas oriundas de insetos, Trindade é cauteloso. “Talvez seja mais sustentável mesmo, do ponto de vista ambiental. O grande problema seria a aceitação: conseguir convencer a população a comer esse produto. Mesmo no caso de usá-los na formulação de outros produtos, como congelados, biscoitos e salgadinhos, vai ser necessário informar, no rótulo, a presença desses ingredientes, além de atentar para o sabor: o consumidor vai ter de gostar.”

A opinião de Ana Lúcia, do Ital, coincide com a do professor Trindade. “No Ocidente, imagino que levará muitos anos para insetos serem aceitos como alimentos. Quanto à carne cultivada, até onde eu sei ainda faltam muitas pesquisas para obter todas as características da carne por meio de cultura de tecidos a um custo razoável. Vale dizer que, no caso dos análogos vegetais, os custos para o consumidor no Brasil são bastante elevados, pois vários ingredientes são importados, e as tecnologias utilizadas ainda são muito recentes. A proteína de ervilha que usamos aqui, por exemplo, é importada a preço de ouro e é difícil de ‘saborizar’. O custo para isso é alto. Portanto, mesmo que o mercado apresente crescimento, o volume de produção ainda representa muito pouco.”

Em novembro de 2019, Ana Lúcia, Viviane e Marco Antônio participaram de um workshop estratégico sobre o tema no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP). O vídeo do debate está disponível. Clique aqui para acessá-lo. 


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