Já ouviu a expressão “zero trans/low sat”? Se nunca ouviu, é possível que nos próximos anos venha a se habituar a ouvir esse termo cada vez mais comum entre os fabricantes de alimentos. A “nomenclatura fashion” é uma maneira de se referir a um sistema chamado de oleogéis pelos profissionais da área de óleos e gorduras. Velhos conhecidos da indústria cosmética e farmacêutica, os oleogéis vêm sendo investigados para aplicação na indústria de alimentos, com vantagens para a saúde do consumidor como, por exemplo, substituir gorduras saturadas e trans ao mesmo tempo.
O oleogel é a mistura de um óleo comum – canola, soja, girassol, amendoim, milho ... – com uma porcentagem pequena de um agente estruturante, ou seja: algo que dá a ele um aspecto de gel, muito parecido com o de uma gordura. “O agente estruturante forma uma rede tridimensional, como se fosse uma esponja, que consegue suportar uma quantidade muito grande de óleo. Essa rede tridimensional ‘segura’ o óleo”, explica a engenheira de alimentos e especialista em tecnologia de lipídios Juliana Ract, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.
De acordo com ela, os primeiros experimentos importantes para uso em alimentos surgiram no início dos anos 2000. “A principal lacuna que os oleogéis podem preencher na área alimentar é a substituição simultânea das gorduras saturadas e trans por óleos, ricos em ácidos graxos insaturados, que são melhores para a saúde. O oleogel é um produto que tem as vantagens nutricionais dos óleos e a textura das gorduras, importantes para a indústria alimentícia porque têm plasticidade, são semissólidas e espalháveis.”
Longa história - A saga do consumidor – e da própria indústria alimentícia – em busca de gorduras menos prejudiciais à saúde e com aplicação possível em alimentos vem de longe. A hidrogenação do óleo foi descoberta na Europa no início dos anos 1900, e foi uma grande inovação, pois permitia a conversão de óleo líquido em gorduras com maleabilidade para a produção de emulsões como margarinas, cremes, recheios, coberturas e também de produtos de panificação, como pães, bolos e massas.
“Quando surgiu, a gordura hidrogenada começou a substituir as gorduras de origem animal usadas na indústria alimentícia – como o sebo e a banha. Acontece que ela passou a ser usada indistintamente, como uma vantagem, porque estávamos substituindo uma gordura de origem animal por uma de origem vegetal. Foram desenvolvidos muitos produtos à base dela pois, além da origem, a gordura hidrogenada tem muitas vantagens com relação às gorduras animais: é uma gordura refinada, neutra, com alta estabilidade oxidativa, para a qual é viável desenvolver uma gama infinita de aplicações. A gordura animal é bruta: tem cheiro forte, sabor forte, e isso limitava a aplicação, em alguns casos”, diz Juliana.
Só que as pessoas começaram a ficar doentes. Com o aumento da incidência de algumas doenças, como as cardiovasculares, foram surgindo estudos avaliando a dieta consumida e relacionando o consumo de gordura hidrogenada com essas doenças, e com a ‘síndrome metabólica’, termo cunhado na década de 80 para designar fatores de risco que aumentam as chances de desenvolvimento de doenças cardíacas, derrames e diabetes. A síndrome tem como base a resistência à insulina, o que obriga o pâncreas a produzir cada vez mais a substância, elevando seu nível no sangue.
“Nos anos 1990, a comunidade científica chegou a um diagnóstico final de que as gorduras trans tinham um papel importante no desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Na natureza, os ácidos graxos trans estão presentes em quantidades bem pequenas. A principal fonte artificial deste tipo de lipídio são os óleos parcialmente hidrogenados, nos quais podem estar presentes em até 40%. A partir de então, órgãos governamentais e agências reguladoras começaram a tomar algumas providências. No início dos anos 2000, a Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, começou a exigir a declaração do teor de ácidos graxos trans nos rótulos dos alimentos, assim como agências do mundo todo, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA. Isso foi muito importante para que a própria indústria buscasse alternativas à hidrogenação”, lembra a engenheira.
Um dos métodos alternativos encontrados foi a interesterificação, que produz gorduras com plasticidade, mas que não são trans. “A interesterificação tem como base misturas de óleos líquidos, como o de soja, e gorduras saturadas, mas de origem vegetal. Porque hoje se sabe que as saturadas fazem menos mal que as trans. Geralmente, nesse processo, são usados óleo de palma e derivados, óleo de palmiste, óleo de coco ou ainda as gorduras totalmente hidrogenadas, chamadas de hardfats.” A informação no rótulo, para o consumidor, é a seguinte: óleos vegetais interesterificados. “Se você encontrar essa informação num rótulo, provavelmente a gordura usada no alimento é zero trans.”
Mas o consumidor ainda não está satisfeito. “Ele não quer que seja só zero trans: ele também não quer consumir gordura saturada. Que tipo de gordura é zero trans e não é saturada? Só o óleo líquido. Mas o óleo líquido não faz margarina, cobertura, recheio, sorvete.... É aí que entra o oleogel, e é por isso que recebeu o nome de zero trans/low sat.”
Desafios – Os estudos acerca dos oleogéis para aplicação na indústria alimentícia ainda esbarram em algumas questões. Elas dizem respeito tanto ao tipo de óleo e de agente estruturante que se deve usar quanto a aspectos regulatórios. “Há óleos que formam géis mais firmes do que outros na mesma concentração de agente estruturante. Geralmente, aqueles que não são refinados, que são extraídos por prensa a frio – óleos brutos como o de linhaça, por exemplo. Sabemos também que cadeias mais insaturadas geram oleogéis mais firmes. O que é bom, porque quanto mais insaturado o óleo, menos danos causa à saúde.”
Há, também, muitos tipos de agentes estruturantes. “Vários emulsificantes têm esse papel: os monoglicerídeos, diglicerídeos, os ácidos graxos livres, as ceras que têm grau alimentício – de abelha, de candelila, de carnaúba, de arroz, de girassol, de cana-de- açúcar... A cera é muito potente, mas tem cheiro de cosmético. E, por mais que seja refinada, o aroma fica. É um fator limitante. Por isso, estamos testando as ceras combinadas com outros agentes estruturantes para ver se conseguimos minimizar o cheiro”, revela Juliana.
De acordo com ela, para a mistura aguentar a temperatura ambiente, é preciso usar de 4% a 6% de cera e, então, o sabor fica comprometido. “Mas vamos insistir na cera porque penso que, se encontrarmos um meio termo e conseguirmos diminuir a concentração dela – usando outro agente estruturante junto, por exemplo – ela pode ser viável. Estamos testando um emulsificante chamado monoestearato de sorbitana. Ele já é muito usado pela indústria alimentícia.”
Outra proposta é não usar a cera em produtos de sabor muito suave, como a margarina, por exemplo. “Talvez se usarmos a cera em produtos como creme de cacau, pasta de amendoim, recheios de chocolate, que têm gosto mais forte, o sabor da cera não fique tão acentuado. Acredito que o emprego dela se dará nesse tipo de produto, e não em produtos como a margarina, por exemplo.”
Segundo a pesquisadora, é difícil dizer quais estruturantes terão mais futuro na indústria alimentícia porque, além da questão sensorial, há a questão regulatória. “A lei impõe limites para o uso de emulsificantes como o monoestearato de sorbitana, que estamos testando junto com a cera. Não se pode usar uma quantidade aleatória. Entretanto, creio que se a comunidade científica provar que esse sistema é vantajoso, não só para a indústria, mas para a saúde do consumidor, os órgãos regulatórios poderão rever suas exigências e limites.”
Imagem: Pixabay
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