23/10/2019 - Diante da panaceia que virou o tema “glúten” e do sucesso dos produtos “gluten free” junto a um amplo público nos últimos anos, a nutricionista Tainá Fernandes Drub resolveu investigar em seu mestrado a percepção dos consumidores frente aos produtos sem glúten. Ela descobriu não só que a percepção do público pode ser bastante distorcida, como também que a afluência de consumidores não celíacos a esse nicho acaba concorrendo para tornar os produtos “gluten free” mais caros para quem realmente precisa deles.
O trabalho foi feito no âmbito do PRONUT – Programa de Pós-graduação Interunidades em Nutrição Humana Aplicada da USP, que envolve a Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF/USP); a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA/USP) e a Faculdade de Saúde Pública (FSP/USP), com orientação da professora Denise Cavallini Cyrillo, da FEA/USP.
“Os alimentos que têm glúten são aqueles que derivam do trigo, da cevada, do centeio e da aveia. O glúten não está presente naturalmente na aveia, mas ela se contamina pelo cultivo e o uso comum de maquinário de beneficiamento. Ao contrário dos alergênicos, em que a legislação permite trazer no rótulo a expressão ‘contém traços de...’, com o glúten o rótulo só pode dizer ‘contém glúten’ ou ‘não contém glúten’. E, se tem glúten, o celíaco não pode comer – mas só o celíaco”, salienta ela.
Acontece que existe uma quantidade significativa de consumidores que acredita que os alimentos sem glúten são mais saudáveis, que levam ao emagrecimento... “Dizem até que o glúten se transforma em açúcar no corpo, ou seja, confundem glúten com carboidrato; o glúten é uma proteína”, revela Tainá sobre o conteúdo das entrevistas feitas por ela ao longo da investigação.
A pesquisadora selecionou sua amostragem em três frentes: entre o público de uma rede social da FENACELBRA (Federação das Associações Nacionais de Celíacos), além de redes sociais de algumas das Associações de Celíacos do país; em páginas de redes sociais de grandes grupos dedicados ao tema “glúten” e em supermercados e hortifrútis. Para o grupo recrutado in loco (80 pessoas), Tainá pediu o endereço de email, para onde enviou as perguntas (apenas 23 responderam). Esse grupo foi escolhido aleatoriamente nos estabelecimentos, e não apenas entre os compradores de produtos sem glúten. Já no caso da internet, a pesquisadora postou a pesquisa nos grupos e esperou as respostas.
“No caso da amostragem da internet eu não consigo saber quantas pessoas acessaram o link, mas 125 responderam. No total, eu tive 148 pessoas. Mas havia o critério de exclusão: médicos, nutricionistas e celíacos. Porque a pesquisa visava os leigos. Excluídos estes, sobraram 54 pessoas, sendo 90% mulheres, com mais de 44 anos e, geralmente, com algum nível de sobrepeso. Destas, 32 seguiam a dieta ‘gluten free’ e 22 não seguiam”, resumiu ela, explicando que o questionário continha cinco perguntas fechadas (múltipla escolha) e quatro abertas (dissertativas).
“Uma amostragem de 54 pessoas satisfaz os requisitos da metodologia que apliquei, que foi o Discurso do Sujeito Coletivo. Trata-se de uma agregação de relatos, em que se agrupam estratos de depoimentos com sentido semelhante em discursos que sintetizam determinadas opiniões. Ou seja: eu aglutinei relatos semelhantes em alternativas de discursos coletivos”, resumiu.
Efeito “preço premium” – Segundo Tainá, um dos problemas dos produtos sem glúten para os celíacos é o custo, muito alto. “Quando se consegue, por meio de recursos de propaganda, elevar o preço desse produto ao que chamamos de preço premium – e, mesmo assim, todo mundo ainda compra – esse preço tende a continuar alto, ou se alterar para cima ainda mais, prejudicando os que realmente precisam.”
Ela supõe que, se a percepção dos consumidores mudar em relação a esses produtos, e a demanda sem fundamento e necessidade reduzirem, o valor agregado deles diminuirá, favorecendo o acesso para aqueles que de fato precisam comprar este tipo de alimento por toda a vida. “É preciso informação adequada para que esse consumo baixe, e assim os produtos saiam dessa faixa de preço.”
O produto sem glúten custa muito mais caro que o tradicional. A diferença de preço entre um pão de forma normal e um sem glúten, segundo um breve levantamento feito por Tainá, é de cerca de R$ 30,00 – mesma ordem da diferença de preço entre um pacote de macarrão tradicional e um sem glúten. Uma bolacha sem glúten pode custar R$ 15,00 mais caro que uma bolacha com a proteína na formulação. E um macarrão instantâneo sem glúten sai mais de R$ 5,00 mais caro que o normal.
A nutricionista reitera que a percepção do público leigo sobre a dieta “gluten free” é equivocada e não fundamentada e isso pode ser prejudicial àqueles que precisam. “As maiores causas de queda na adesão a produtos sem glúten por celíacos são o preço e a acessibilidade, ou seja, não encontrar o produto no supermercado.”
Respostas inusitadas – As cinco perguntas objetivas da pesquisa abordavam a frequência da leitura de rótulos pelos entrevistados; a intenção de aquisição de produtos que contêm glúten; a intenção de aquisição de produtos que não contêm glúten; a rigidez na condução da dieta sem glúten e os meios de adquirir informações sobre a proteína. “Do grupo que segue a dieta sem glúten, 35% afirmou ter intenção de adquirir produtos com glúten, mas quando perguntados a respeito de abrir uma exceção na dieta, apenas 15% disse que faria. E do grupo que não segue a dieta ‘gluten free’, 70% afirmou ter intenção de adquirir produtos sem glúten”, revela Tainá, não sem uma ponta de perplexidade.
Nas respostas às perguntas abertas a falta de informação fica ainda mais patente. “Perguntamos qual era a opinião dos entrevistados sobre os produtos que contêm glúten sob a perspectiva de saúde. Do grupo que segue a dieta sem glúten, 53% disse que eram prejudiciais à saúde. Relataram motivos como falta de enzimas para a digestão do glúten; desencadeamento de psoríase, desidrose e refluxo; e alguém disse também que o glúten vira açúcar no organismo. E do grupo que consome produtos com glúten, surpreendentemente 45% acha que ele é prejudicial à saúde. Relatam motivos como transgenia das sementes de trigo – imagino que se referindo a um tipo específico de melhoramento, por meio de enxerto de glúten no grão de trigo para conseguir, por exemplo, um macarrão mais durinho. Mas isso não é transgenia. De qualquer maneira, esse grupo entende que só quem tem algum tipo de intolerância deve evitar o glúten, embora parte dele ache que a proteína é prejudicial à saúde”.
A resposta à questão O que você pensa de um alimento em cujo rótulo está escrito “não contém glúten”? também dá uma ideia da desinformação. “Do grupo adepto do ‘gluten free’, 53% se encaixa no discurso dos que achavam que eram alimentos mais saudáveis: limpos, puros, com menor índice glicêmico e menos farinha de trigo. Ora, se é sem glúten não tem farinha de trigo. E a variação do nosso índice glicêmico não depende da presença ou não de glúten no alimento.”
Perda de peso – A ideia de que produtos sem glúten contribuem para a perda de peso também apareceu claramente na pesquisa de Tainá. Diante da pergunta Se você precisasse perder peso, compraria alimentos com ou sem glúten, e por que?, os dois grupos se comportaram de forma muito semelhante, reiterando o “mito” de que cortar glúten emagrece.
“Dos adeptos da dieta sem glúten, 56% afirmaram que a restrição contribui para a perda de peso, e dos não adeptos, 50% acham a mesma coisa. Creio que isso tem a ver com a qualidade da informação consumida, já que o que explica a redução de peso em alguns indivíduos que deixam de comer alimentos com glúten é a diminuição da ingestão de carboidratos e do valor calórico que costuma ser alto em alimentos como pães, bolos, bolachas, cerveja e massas alimentícias. Não necessariamente a redução da ingestão do glúten. Os produtos sem glúten têm, inclusive, geralmente, mais lipídios que os tradicionais.” Ela ressalta que “sem glúten” não significa de maneira nenhuma “sem caloria”.
Informação – A pesquisadora chama a atenção para o papel da internet como principal fonte de obtenção da informação sobre esses produtos, em ambos os grupos. Segundo Tainá, na pergunta fechada sobre fontes de informação e respeito do glúten, 60% dos que seguiam a dieta se informavam pelas redes sociais e 40% dos não adeptos também. Os números evidenciam a influência do “marketing nutricional virtual” em torno de mitos envolvendo o glúten como um nutriente não saudável.
A pesquisadora afirma que a visão coletiva de que os produtos “gluten free” são mais saudáveis é aproveitada pela indústria em suas estratégias de marketing, com a utilização de ‘informações especiais’ nos painéis principais de seus rótulos, estimulando a venda. “Os produtos, como sabemos, não são necessariamente mais saudáveis, mas sim mais caros, e a estratégia não contribui para que os consumidores façam escolhas mais bem informadas.”
Ela, porém, esclareceu – após analisar os rótulos e informações de 158 produtos sem glúten, entre pães, bolos, bolachas e massas alimentícias – que a rotulagem de tais alimentos obedece à legislação no que diz respeito a informar o consumidor sobre a existência ou ausência da substância em sua composição. “O que não impede a indústria de adaptar essa exigência para transformá-la em uma estratégia de marketing nutricional”, complementa.
Na tentativa de melhorar a qualidade da informação veiculada sobre o tema, Tainá preparou um material em PDF e deu aos participantes da pesquisa após a entrega das respostas das questões. Ela ressalvou que muitas das fontes consultadas pelos leigos que selecionou em seu procedimento de amostragem eram fontes de informação voltadas exclusivamente para celíacos.
“Não havia, nelas, posts dedicados a não celíacos, o que é mais do que normal, no caso das páginas de associações de celíacos. Então, os que entram nessas redes acabam consumindo a informação para os celíacos. Imagino que essas associações não trabalhem com a ideia de que suas redes são acessadas por um público mais amplo que os celíacos.”
Curiosidades
• Sem poder ingerir glúten, resta aos celíacos utilizar farinhas de fécula de batata, fécula de mandioca e de arroz; assim como cereais sem glúten, tais como milho, arroz, sorgo e milheto, e os chamados pseudocereais, como amaranto, quinoa e trigo sarraceno.
• No Brasil, a Lei nº 10.674/2003 exige que todos os produtos industrializados contenham a alegação sobre a existência ou não de glúten na formulação.
Saiba mais:
Não existe comprovação científica de que uma dieta sem glúten pode fazer você emagrecer
Imagem: Luisella Planeta Leoni por Pixabay
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