Nova formulação de leite fermentado probiótico pode agregar valor aos resíduos da fabricação de cerveja

Pesquisa mostrou que a suplementação de leite fermentado com bagaço de malte de cevada pode aumentar a resistência das bactérias probióticas ao estresse gastrointestinal simulado in vitro.

Fronteira do conhecimento

01/07/2021 -- Um novo alimento funcional pode surgir a partir de uma pesquisa que analisou os benefícios da associação de leite fermentado por bactérias potencialmente probióticas com bagaço de malte de cevada – o resíduo da fabricação de cerveja que é rico em fibras. O trabalho foi conduzido pela engenheira de alimentos Carolina Battistini em sua tese de doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP) e poderá resultar em novas aplicações desse subproduto com uma abordagem simbiótica, além de contribuir para o entendimento do potencial anti-inflamatório dos probióticos.

Nas simulações in vitro, foi constatado que o bagaço de malte de cevada possibilitou um aumento da resistência das bactérias probióticas ao estresse gastrointestinal. Isso, porque o “grão gasto” da cevada é composto por fibras e compostos bioativos com potencial prebiótico. Quando ingeridas, essas fibras não são digeridas pelo intestino delgado e chegam intactas ao cólon, servindo de substrato para a microbiota. Assim, os micro-organismos vivos benéficos presentes no leite fermentado encontram um ambiente propício para se multiplicarem no trato gastrointestinal, o que ajudaria a equilibrar a microbiota beneficiando, principalmente, pacientes com inflamações crônicas no intestino.

Battistini explica que as doenças inflamatórias intestinais mais comuns são a colite ulcerativa e a Doença de Crohn (Saiba mais sobre essas doenças abaixo). “Nas doenças inflamatórias intestinais ocorre um desequilíbrio da microbiota, com diminuição das bactérias benéficas”, afirma. Como se trata de doenças crônicas, o tratamento apenas reduz a inflamação e diminui os sintomas.

Testes promissores – Na primeira etapa da pesquisa, foi avaliada a fermentabilidade do bagaço de malte de cevada em culturas para selecionar as cepas mais adequadas à aplicação em leite fermentado. Foram avaliadas dez culturas probióticas, com micro-organismos benéficos à saúde, e duas cepas starter (iniciadoras) como controle, que têm a função de acelerar o processo de fermentação, mas que não necessariamente trazem benefícios à saúde do consumidor. A combinação que teve o resultado mais promissor foi Streptococcus thermophilus TH-4® e Lacticaseibacillus paracasei subsp. paracasei F19®. Quatro formulações de leite fermentado foram avaliadas, e todas apresentaram potencial como alimentos probióticos.

“Em todas, as contagens totais dos micro-organismos ficaram acima de 1010 UFC [Unidades Formadoras de Colônia] para uma porção de 200 mL. Além disso, estimamos que entre 108-1010 UFC poderiam chegar viáveis ao cólon e, assim, conferir benefícios à saúde. No entanto, ensaios clínicos bem conduzidos e desenhados adequadamente ainda precisam ser realizados para confirmar essas alegações de saúde”, afirma a cientista.

Na pesquisa, Battistini também avaliou a influência do gene VDR, receptor de vitamina D (vitamin D receptor), no potencial anti-inflamatório conferido pelos micro-organismos probióticos. Alguns estudos indicam que esse gene está diretamente ligado à composição da microbiota intestinal, e que a baixa expressão ou ausência do VDR tornariam o indivíduo mais suscetível a doenças inflamatórias intestinais. No estudo, foi observado que o bagaço de malte de cevada não impactou a expressão do VDR e, portando, o efeito anti-inflamatório do produto poderia ser atribuído aos probióticos. Outros trabalhos já haviam observado um efeito similar, mas esse foi o primeiro a utilizar uma matriz alimentar.

Em uma fase posterior, foram realizados ensaios com animais para avaliar a resposta do organismo após o consumo de leite fermentado potencialmente probiótico, aplicando um modelo de colite (inflamação no colón) induzida. A formulação foi administrada em camundongos selvagens e em camundongos geneticamente modificados – sem o gene VDR, receptor de vitamina D. O composto mostrou efeito positivo apenas para camundongos selvagens, diminuindo o nível sérico de citocinas inflamatórias e piorando a inflamação nos animais que não tinham VDR.

“Um componente importante nesse processo, portanto, é o receptor de vitamina D, o VDR. Entender os mecanismos envolvidos poderá contribuir para uma recomendação do uso de probióticos como tratamento complementar em doenças inflamatórias intestinais de forma mais segura e eficaz”, afirma Battistini. Devido à falta de evidências, atualmente os probióticos são indicados apenas para ensaios clínicos. Isso, porque cada indivíduo responde ao tratamento de forma diferente, dificultando a aplicação de um tratamento universal para todos os casos. “Aprofundar os estudos sobre os mecanismos de ação dos probióticos é de extrema relevância neste sentido”, completa.

Os resultados dos testes in vivo reforçam a hipótese de que o efeito anti-inflamatório dos probióticos é regulado pelo VDR. “Na fase atual da pesquisa, estou estudando outros fatores envolvidos na resposta inflamatória exacerbada na ausência do VDR e o impacto sobre a microbiota intestinal”, diz a cientista.

Potencial de mercado – Battistini avalia que um produto simbiótico baseado nos achados de sua pesquisa poderá ser bem recebido pelos consumidores, já que sua formulação usa o leite – um alimento com boa aceitação e de consumo frequente pela população, fator crucial para se obter os benefícios dos alimentos funcionais, além de ser uma matriz reconhecidamente adequada para a adaptação dos probióticos. Além disso, um produto com essa formulação agregará mais valor ao bagaço do malte. O Brasil é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, chegando a 16 bilhões de litros por ano, sendo gerada uma grande quantidade de resíduo: cerca de 3,2 bilhões de quilos de bagaço de malte. Uma parte desse volume é destinada à ração animal, porém, algumas indústrias menores acabam descartando esse resíduo no lixo.

Battistini defendeu sua tese de doutorado no Programa de Ciência dos Alimentos da FCF-USP, sob orientação da professora Susana Marta Isay Saad. A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente, ela atua como pesquisadora de pós-doutorado na Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia do Departamento de Medicina da Universidade de Illinois, em Chicago, nos EUA, sob a supervisão da professora Jun Sun, cuja linha de pesquisa abrange as interações do VDR e outros fatores na modulação da microbiota intestinal.

Saiba mais:

Colite ulcerativa: é uma doença inflamatória do cólon, intestino grosso, que se caracteriza por inflamação e ulceração da camada mais superficial do cólon. Os sintomas incluem caracteristicamente diarreia, muito frequente com sangramento retal, e às vezes dor abdominal.

Doença de Crohn: é uma doença inflamatória séria do trato gastrointestinal. Ela afeta predominantemente a parte inferior do intestino delgado (íleo) e intestino grosso (cólon), mas pode afetar qualquer parte do trato gastrointestinal. A doença de Crohn habitualmente causa diarreia, cólica abdominal, às vezes febre, e sangramento retal. Também pode ocorrer perda de apetite, e de peso subsequente. Os sintomas podem variar de leves a graves, mas em geral, as pessoas com doença de Crohn podem ter vida ativa e produtiva. A doença de Crohn é crônica e não se sabe qual é a sua causa. Os medicamentos disponíveis atualmente reduzem a inflamação e habitualmente controlam os sintomas, mas não curam a doença.

Fonte: Associação Brasileira de Colite Ulcerativa e Doença de Crohn

compartilhar

Comentários