Os queijos artesanais estão em alta no mercado brasileiro: nas receitas dos chefs da moda, nos supermercados “gourmet”, nos inúmeros blogs de gastronomia internet afora ou nos eventos patrocinados de alta gastronomia. Recentemente, a comercialização interestadual de queijos artesanais foi liberada, com a aprovação da lei 13.680/2018, que alterou uma norma de 1950. A medida dividiu opiniões entre os especialistas: uns alegam que a comercialização interestadual dessas iguarias é um risco, já que qualquer problema de saúde acarretado por práticas de produção ruins ou por matéria prima de má qualidade pode ser espalhado pelo país com mais facilidade. Outros afirmam que as normas a que estavam sujeitos os produtores artesanais até então os sufocavam e impediam que desenvolvessem mercado. Mas o que caracteriza, afinal, um queijo artesanal e o que o diferencia do produto industrializado, cujo comércio não acarreta preocupação sanitária?
De acordo com o Projeto de Lei 2.404/15, que dispõe sobre a elaboração e comercialização desses produtos e que tramita na Câmara dos Deputados (atualmente na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ), queijo artesanal é aquele que é “elaborado por métodos tradicionais, com vinculação e valorização territorial, conforme protocolo específico para cada tipo e variedade” e “produzido com leite da própria fazenda ou de fazendas próximas”.
Já o pesquisador José Manoel Martins, do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG), afirma que há várias versões para queijos artesanais e industriais. Uma delas diz que os queijos são considerados artesanais quando são produzidos com leite cru e, tradicionalmente, estão ligados a uma determinada região produtora. E são industrializados quando o leite passa pelo processo de pasteurização – tratamento térmico que elimina bactérias que trazem risco à saúde humana e reduz alteradores a níveis aceitáveis (alteradores são micro-organismos que podem originar alterações nos produtos).
Mas a pasteurização nem sempre é suficiente para determinar se o produto é artesanal ou não. “As premissas para a definição do que é artesanal ainda não foram completamente atendidas e não há um consenso sobre a abrangência de um produto artesanal”, afirma Martins. Segundo ele, hoje há diversos produtos que são feitos com o leite pasteurizado, mas, exceto pela ausência do leite cru, utilizam em todas as etapas da fabricação processos semelhantes aos empregados na produção de queijos artesanais.
“Muita gente acredita, porém, que a pasteurização é suficiente para descaracterizar o produto artesanal. Em alguns países, como a Espanha, há produtos semi-artesanais, que não perdem a origem artesanal, apesar de agregarem alguns processos industriais. A linha que separa o artesanal do industrial não é mais tão clara.”
Ele admite que há certa controvérsia sobre os critérios para fazer essa distinção. “Não há propriamente um consenso sobre o que é um produto artesanal.” Na prática, porém, os especialistas agregam à distinção alguns critérios mais subjetivos. “Penso que um produto artesanal é aquele que faz jus ao termo ‘arte’, mesmo que o leite seja pasteurizado, contanto que o processo de produção seja essencialmente manual e que não sejam usados equipamentos de produção em larga escala”, explicou.
O texto do PL 2.404/15, por sua vez, exclui da definição de artesanal os queijos “feitos em indústrias de laticínios, mesmo que, em seu registro junto ao órgão competente, os responsáveis tenham obtido autorização para inserirem nos rótulos os termos ‘artesanal’ ou ‘tradicional’”.
Do ponto de vista dos fabricantes, uma diferença importante entre os queijos artesanais e industrializados é a escala de produção. “Também não existe um consenso sobre o volume máximo de produção de leite para que um queijo seja artesanal – alguns consideram que o limite seria de 8 a 10 mil litros de leite por dia, mas para a industrialização não há limites.”
Segundo o pesquisador, estima-se que pelo menos 100 variedades artesanais de queijo sejam produzidas no Brasil atualmente. “Nos últimos quatro ou cinco anos, as regiões produtoras de queijos artesanais se apresentaram ao país, com produção de norte a sul, cada um com sua particularidade. Isso tem enriquecido muito o mercado brasileiro.”
Segurança e características especiais – Em geral, a pasteurização do leite na produção industrial elimina mais de 95% da sua microbiota, garantindo que o produto final, se obedecer a boas práticas de fabricação, não transmita doenças ao consumidor. No entanto, ao mesmo tempo em que elimina as bactérias patogênicas, o processo também leva à perda parcial de algumas vitaminas, da diversidade da microbiota benéfica e do caráter especial do produto.
“A pasteurização acaba tirando dessa matéria prima uma série de micro-organismos, enzimas e compostos que poderiam contribuir com características especiais para os queijos, como sabor, aroma e textura desenvolvidos durante a maturação”, disse o pesquisador.
Por outro lado, a pasteurização torna o leite mais uniforme, favorecendo a padronização dos processos de produção do queijo e aumentando o controle de qualidade industrial. “Em suas várias etapas, os processos de controle de temperatura, de prensagem e de maturação são muito mais controlados e o produto final tem um padrão mais uniforme que o artesanal”, afirmou.
Martins explica que, mesmo mantendo a sua essência, a cadeia produtiva dos queijos industrializados tem mudado muito nos últimos anos, com o uso de novos aditivos e de fermentos lácteos extremamente potentes, com alta capacidade de acidificação e maturação. “Com isso, um queijo muçarela por exemplo, cuja massa precisaria fermentar de 4 a 6 horas antes da filagem, hoje já pode ser filado poucos minutos após a retirada do soro, com melhoria visível de produtividade e propriedades funcionais. É importante destacar que há no Brasil queijos industrializados de altíssima qualidade e boa variedade disponível no mercado.”
Tanto a produção de queijos artesanais como a de industrializados estão em ascensão no Brasil, segundo ele. “Nos dois casos, ainda há espaço para expansão. São nichos diferentes de mercado. O queijo artesanal tem sabor mais característico e mais marcante que o industrializado. O foco é um consumidor que valoriza a questão cultural e os produtos de origem. Por outro lado, os industrializados – em especial a muçarela, o prato, o Minas padrão e o requeijão – são produtos de larga escala que têm a missão de alimentar a população. Há espaço para ambos”.
De acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Queijo (Abiq), o Brasil produz aproximadamente um milhão e duzentas mil toneladas de queijo anualmente. A partir dessa estatística, a entidade estima que o consumo de queijos no País é de 5,5 quilos por habitante ao ano – aproximadamente a metade do que se consome na Argentina, por exemplo. Cerca de 2 mil laticínios se dedicam à produção de queijos no Brasil, sendo que cerca de 150 empresas representam entre 70% e 80% das vendas. Os números, porém, não incluem os queijos artesanais, para os quais não há estatísticas oficiais.
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Imagem: Pixabay/CC
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