Kefir de A a Z: tudo que você precisa saber sobre essa bebida

Você sabia?

O kefir tradicional é originário do Cáucaso, região montanhosa entre os mares Negro e Cáspio, na Euroásia. O conhecimento acerca das propriedades benéficas da bebida já existia antes de Cristo. Esse tipo de leite fermentado é caracterizado por uma microbiota simbiótica específica que reside em uma estrutura de exopolissacarídeos produzidos pelos próprios micro-organismos. A bebida é obtida pela inoculação dos “grãos de kefir” em leite fresco. Os grãos são uma composição complexa, uma mistura de várias bactérias lácteas e leveduras que pode variar de acordo com a temperatura, o clima, umidade, as características do leite...

“A estrutura dos grãos de kefir pode apresentar uma grande variação na população microbiana, normalmente associada à origem e até à idade dos grãos. Sabemos, por exemplo, que o kefir que se produz no Brasil não é o mesmo que se produz na Europa, em climas mais frios, porque o balanço e variedade entre as bactérias e leveduras aqui é diferente. Esse balanço é influenciado pela qualidade do leite, pelo clima, pelo processo de confecção da bebida.... Agora, não pode ser tão diferente a ponto de não garantir a obtenção do produto final que se espera. As combinações podem mudar, mas o produto final obtido mantém algumas características básicas”, diz o professor Svetoslav Todorov, pesquisador visitante da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Segundo ele, apesar de variações observadas na população microbiana que compõe os grãos, todos os grãos de kefir produzem uma bebida caracterizada por pH entre 4.2 a 4.6, que contém 0,8% de ácido láctico, de 0,1% a 2,0% de álcool, fermentação refrescante, ligeiramente gaseificada e alcoólica, com um sabor amargo e azedo. Entre 89% e 90% do volume do kefir é água, 0.2% da massa é composta por lipídios, cerca de 3% por proteínas e 6% por açúcar.

Na América Latina, os grãos de kefir e sua preparação foram introduzidos por imigrantes libaneses e sírios no final do século XIX. O Brasil produz kefir de maneira artesanal, caseira, como o mundo todo. Os grãos não podem ser adquiridos em lojas ou supermercados: eles são doados por quem já cultiva os micro-organismos. De acordo com o artigo "Brazilian Kefir: From Old to the New World", assinado por Cristina Stewart Bogsan e por Svetoslav Todorov, os grãos de kefir brasileiros apresentam uma variação relativa na distribuição dos micro-organismos. Em geral, as bactérias lácticas são observadas tanto no interior quanto no exterior do grão; as firmicutes ocorrem, principalmente, na porção exterior, enquanto as leveduras são mais frequentes na parte interna dos grãos. “Os micro-organismos na superfície dos grãos causam um impacto maior sobre o processo de fermentação do kefir”, afirma Todorov.

Benefícios e alegações – A essa bebida ancestral – rica em vitaminas, proteínas bioativas, minerais, carboidratos e ácidos orgânicos – são atribuídas propriedades antimicrobianas, impacto na ativação do sistema imunológico, efeito antitumoral e anti-hipertensivo, prevenção da diabetes, além de efeitos positivos no trato gastrointestinal e no controle do colesterol. O segredo é a simbiose entre os inúmeros micro-organismos que a compõem.

“De um lado, as bactérias lácteas fermentam o leite e produzem ácido lático, que é o que confere acidez ao produto final. De outro, as leveduras produzem gás e vitaminas. E ambas podem produzir antimicrobianos. Esse complexo resulta numa bebida um tanto ácida, viscosa, e com um pouco de gás carbônico. Tanto que um ‘apelido’ do kefir é champagne do leite”, diz o professor. Ele lembra que o paladar humano prefere sabores ácidos aos básicos. 

A complexidade do balanço entre bactérias e leveduras, segundo Todorov, é um desafio para a produção industrial de kefir com alegações de benefícios específicos. “Na Rússia, após a revolução de 1917, investiu-se na produção industrial de kefir para ser usado como probiótico. Só que o problema é que não se pode garantir a mesma qualidade do produto na maneira de fabricação industrial. Um produto probiótico é aquele dotado de determinadas bactérias vivas que influenciam positivamente a saúde. Mas como garantir que ali haverá a quantidade e qualidade necessária de bactérias, de acordo com os padrões estabelecidos, se o produto é tão complexo? Para ser comercializado com a alegação de produto probiótico é preciso que ele tenha estabilidade, padrão.”

Nos últimos anos, por conta do interesse dos consumidores em produtos alimentares que agregam benefícios à saúde, a bebida foi produzida por algumas companhias em escala industrial, por meio da adaptação do conhecimento tradicional e de approaches industriais. “Mas abandonaram a alegação de produto probiótico, porque não podem garantir esse atributo.” Além da Rússia, o produto é consumido na Hungria, Polônia, Suécia, Noruega, Finlândia, Alemanha, Grécia, Áustria, Canadá, Brasil e Israel. Alguns autores afirmam que sua popularidade vem crescendo nos Estados Unidos e no Japão.

Pelo método tradicional caseiro, a bebida pode ser preparada a partir do leite de vaca, de cabra, de ovelha, de búfala ou de camela. Basta colocar os grãos em leite fresco e deixar fermentar por 18 a 24 horas. Quanto mais tempo a bebida fermenta, mais ácida fica. Ao fim do processo, é só separar os grãos com uma peneira, lavá-los em água corrente e guardá-los. Segundo Todorov, é preciso guardar os grãos em bom estado e consumir a bebida em dois, três dias. “Se você demora muito para consumir, ela fica muito ácida.”

Não se consegue fazer kefir a partir de leite em pó, por exemplo, mas ele pode ser feito a partir de substitutos do leite, tais como leite de arroz e leite de coco. Entretanto, essa mudança resulta em uma composição diferente dos grãos e do produto final. 

Boas práticas – Os grãos de kefir são gelatinosos, amarelados, e variam em tamanho de 0,3 a 3,5 cm de diâmetro. Durante a fermentação, os grãos aumentam de peso entre 5% e 7%. Os grãos devem ser lavados com água limpa após cada uso e armazenados em baixa temperatura, dentro de um pote tampado, cobertos com leite. “Quando cuidadosamente preservados, sua atividade pode ser mantida por anos.”

De acordo com Todorov, a confecção do kefir em casa é feita há séculos e requer apenas que se observem boas práticas de higiene e uso de matéria prima (leite) de boa qualidade e boa procedência. Entretanto, ele alerta: “Qualquer processo de fermentação caseiro é passível de risco.”

Se mal cuidado, o kefir também pode estragar. “Nos grãos há acetobactérias e também outros micro-organismos. Se elas se proliferam muito, em detrimento de outros micro-organismos, isso pode gerar um desequilíbrio e afetar o produto final, conferindo à bebida um acentuado sabor de vinagre.” Outro detalhe: a presença de antibióticos no leite é prejudicial ao processo de produção do kefir e aos grãos. “Por lei, não é permitida a comercialização de leite com antibióticos. As bactérias lácteas “não gostam” de antibióticos, pois eles as exterminam.”

No caso dos grãos de kefir estragarem, sua aparência também pode mudar. Eles ficam mais quebradiços, menores e com aspecto de areia. “Se as bactérias lácteas são exterminadas, o equilíbrio do complexo fica comprometido: sobrarão mais leveduras e acetobactérias. No final, você vai obter um produto que não é mais kefir. E, uma vez que se destroem os complexos dos grãos de kefir, não se consegue mais voltar atrás.”

Água e açúcar – Além do kefir tradicional, de leite, há também uma bebida feita da fermentação de açúcar em água. A primeira referência desse tipo de kefir remonta à guerra da Crimeia, em 1855, quando soldados ingleses trouxeram de volta o produto da região do conflito. Os grãos de kefir cultivados em solução açucarada contêm microbiota simbiótica e matriz estruturante muito semelhante aos grãos de kefir de leite. Hoje em dia, a bebida é consumida em países da América Latina, como México e Brasil. “O gosto não é o mesmo. É outra coisa, embora o processo seja parecido. É muito popular no Peru e na Colômbia também.”

Fonte: Barretto Penna, A. L.; Nero, L. A. e Todorov, S. D. : Fermented Foods of Latin America: From Traditional Knowledge to Innovative Applications. Florida: CRC Press, 2016, 338 p.

Imagem: Karina Ninni/Alimentos Sem Mitos

compartilhar

Comentários