Gorduras trans foram banidas no Brasil, mas os alimentos ficarão mais saudáveis?

Pesquisadora da USP alerta para o risco da substituição por gorduras saturadas que, embora sejam menos nocivas à saúde, podem aumentar os níveis de colesterol ‘ruim’, o LDL, entre outras consequências, se o consumo for excessivo.

Nutrição na medida

07/03/2023 - Desde o início deste ano, os produtos alimentícios, produzidos aqui ou importados, não podem mais conter gordura parcialmente hidrogenada, a principal fonte de gorduras trans industriais nos alimentos. É o que determinou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 332 de 2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas será que os alimentos industrializados realmente se tornaram saudáveis neste aspecto? Pode ser que não, se a conduta dos fabricantes for semelhante à observada em uma pesquisa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), realizada entre os anos de 2018 e 2022 no segmento de bolachas recheadas e wafers.

Os ácidos graxos (gorduras) trans estão relacionadas com doenças cardiovasculares e diabetes do tipo 2, além de infertilidade e problemas no desenvolvimento do feto, caso a mãe consuma esse tipo de gordura na gestação e no período de amamentação. Evidências científicas demonstram que não existe um limite seguro para o seu consumo, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda sua eliminação da dieta.

Até o ano passado, para um produto trazer a alegação ‘zero trans’ em seu rótulo era preciso atender as exigências de outra resolução da Anvisa, a RDC nº 54 de 2012. No caso, conter valores iguais ou menores que 1,5 gramas na soma de gorduras trans e saturadas por 50 gramas de alimento, e 0,1 gramas de gordura trans na porção (30 gramas) — com variação máxima de até 20% (RDC 360 da Anvisa). No entanto, conforme apontou a pesquisa, várias marcas de bolachas recheadas e wafers comercializaram produtos em inconformidade com a legislação, colocando em risco a saúde do consumidor.

O estudo foi feito pela farmacêutica Tamires Carvalho Lins Montilla, sob a coordenação do professor Jorge Mancini-Filho, do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da FCF-USP. Foram analisados os teores de ácidos graxos trans e saturados em 118 bolachas recheadas e wafers, usando cromatografia gasosa – um conjunto de técnicas que permite a separação e a quantificação de compostos químicos.

Teores elevados – A primeira etapa da pesquisa foi feita em 2018 e 2019, quando foram avaliadas 65 bolachas recheadas e 40 wafers, sendo bolachas recheadas de 20 marcas e wafers de 15 marcas, divididas em dois grupos de acordo com o que seus rótulos indicavam: zero trans (50 recheadas, de 16 marcas, e 28 wafers, de 11 marcas) e com gorduras trans (15 recheadas, de 4 marcas, e 12 wafers, também de 4 marcas). “Todos os produtos do grupo ‘zero trans’ estavam em desacordo com norma porque excederam o limite de 1,5 gramas de somatória de gordura trans e saturadas em 50 gramas de amostra, apesar de conterem 0,1 gramas de gordura trans por porção [30 gramas]. Ou seja, elas utilizaram as gorduras saturadas como substitutas”, afirma Montilla.

Do grupo que indicava a presença de ácidos graxos trans nos rótulos, nove amostras de bolachas recheadas e quatro de wafers ultrapassaram 2 gramas de gordura trans em 100 gramas de amostra. Em 1995, a OMS recomendou que a ingestão máxima de gorduras trans não fosse superior a 2 gramas por dia (baseada em uma dieta de 2.000 calorias). “Encontramos uma bolacha wafer com 8,54 gramas de ácidos graxos trans por 100 gramas. Isso é muito, supera em mais de quatro vezes a recomendação da OMS”, destaca a pesquisadora.

Na segunda etapa da pesquisa, em 2022, foram analisadas novamente seis bolachas recheadas e quatro bolachas wafers, cujos níveis de gordura trans tinham sido elevados nas primeiras análises. “As marcas diminuíram os teores de ácidos graxos trans, porém, os saturados continuaram sendo usados como substitutos, excedendo os limites de 1,5 gramas por 50 gramas da somatória de ambas. Isso foi constatado em todas as bolachas recheadas e em dois wafers. As outras duas amostras de wafers apresentaram altos teores de gordura trans, apesar dos rótulos indicarem zero trans”, afirma a pesquisadora.

Nessa etapa também foram analisadas três amostras de bolachas wafers, todas da mesma marca, que não tinham sido analisadas anteriormente. Essas amostras apresentaram resultados superiores a 2 gramas de gorduras trans por porção, demonstrando que, em 2022, ainda havia produtos com valores elevados mesmo com a perspectiva de proibição desse ácido graxo a partir de 2023.

Problema de fiscalização – Para a pesquisadora, há um problema grave de fiscalização. “Hoje a Anvisa não faz avaliações periódicas dos produtos, o que abre brecha para que possam ser alterados depois da análise”, afirma. Montilla considera que o banimento das gorduras trans, caso seja cumprido, trará ganhos à saúde do consumidor. “No entanto, se houver a substituição das gorduras trans pelas saturadas, permanecem os riscos de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, ainda que em menor grau”, aponta.

Segundo a pesquisadora, as gorduras saturadas, em comparação com a trans, diminuem os riscos do aparecimento de doenças cardiovasculares em 17%. “De qualquer forma, ela não é saudável, pois não reduz os índices de HDL, conhecido como o ‘colesterol bom’, mas segue aumentando o LDL, o ‘colesterol ruim’”, complementa.

Alternativas são caras – Nos alimentos industrializados, os ácidos graxos trans vinham sendo utilizados para melhorar o sabor, a crocância, entre outros fatores relacionados ao prazer no consumo do alimento. A maior parte das gorduras trans (de 80% a 95%) é produzida artificialmente por meio de um processo conhecido por hidrogenação industrial. Somente cerca de 2% a 8% dessas gorduras são produzidas de forma natural por meio de um processo chamado de biohidrogenação que ocorre no rúmen de animais ruminantes. O restante é formado por meio de refino, desodorização e fritura de alimentos.

As alternativas para os ácidos graxos trans, como a interesterificação e óleos modificados geneticamente, implicam em custos elevados para a indústria. No entanto, novas alternativas estão sendo desenvolvidas por pesquisadores, como os oleogéis, que são compostos feitos à base de um gel que se assemelha às gorduras, produzido pela mistura de substâncias insolúveis e solventes.

compartilhar

Comentários