16/04/2021 - Durante milhares de anos, as técnicas de domesticação de plantas e seleção de indivíduos nos permitiram aumentar a produtividade e selecionar espécies baseadas em características sensoriais agradáveis para nós – como coloração, consistência, aroma e sabor. Uma das consequências naturais do aumento da produtividade é a redução da quantidade de proteína na composição da planta, que acumula mais carboidratos. Apesar disso, a produção de proteína por hectare hoje é muito maior. É o que explica o agrônomo Lázaro Peres, professor da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" (ESALQ-USP).
O trigo que consumimos hoje possui 13% de proteína em sua composição, enquanto o trigo selvagem apresenta 19%. Isso representa uma perda de aproximadamente 30% de proteína. No entanto, o trigo domesticado produz pelo menos três vezes mais do que o primitivo por hectare. Outro exemplo é o arroz – embora hoje ele não seja uma fonte de proteína, e sim de carboidrato, a espécie selvagem tem uma alta porcentagem de proteína, chegando a 15%; já a atual tem 3%. “No entanto, o arroz domesticado tem uma produtividade 10 vezes maior. Dessa forma, se você plantar 1 hectare de arroz domesticado, você vai produzir muito mais proteína do que se plantar 1 hectare de arroz selvagem”, destaca Peres.
O professor acrescenta que as culturas atuais de trigo e arroz já praticamente atingiram o plateau de produtividade, ou seja, dificilmente seria possível deixá-las ainda mais produtivas. Dessa forma, a tendência é que a quantidade de proteína disponível hoje nas plantas se estabilize.
Em termos nutricionais, é possível manter uma alimentação rica em proteína ao diversificar as fontes que consumimos. Alimentos como carne, peixes, queijos e ovos são ricos nesse nutriente. Já a proteína vegetal pode ser encontrada principalmente na soja, quinoa, lentilha e feijão. [Para mais informações, consulte a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos, desenvolvida por pesquisadores do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center)].
Causa e efeito – Mas afinal, por que houve perda de proteína? Quanto maior a demanda por alimentos, mais se cultiva e mais se domestica – consequentemente, são selecionadas as espécies mais produtivas. Por isso, à medida que as espécies são domesticadas, a tendência é que elas aumentem a quantidade de carboidratos, que depende apenas da fotossíntese (gás carbônico e luz solar). “Além disso, como as plantas competem com ervas daninhas, precisam germinar mais rápido. O que facilita esse processo é a maior quantidade de energia [carboidratos]”.
A produção de proteína, por outro lado, depende da disponibilidade de nitrogênio no solo e da eficiência de absorção e assimilação do nitrogênio pela planta. “Embora tenha muito mais nitrogênio no ar do que gás carbônico, esse nitrogênio não está disponível para as plantas. Ele precisa ser fixado no solo por bactérias ou por meio da adubação, o que limita quantidade de nitrogênio no solo”, afirma. Outro fator limitante é o chamado balanço carbono-nitrogênio, que mantém a homeostase (estabilidade) da planta. Como as plantas domesticadas foram selecionadas em função da produtividade e absorvem mais carbono, ocorre naturalmente a diminuição da absorção de nitrogênio.
Os cereais conhecidos como “hiperproteicos” (chia, amaranto, quinoa), por exemplo, têm um alto teor de proteína se mantidos em condições silvestres, ou seja, com a coleta direta do que está disponível na natureza. Como são grãos que foram pouco domesticados, acabam acumulando mais proteína. “Caso a demanda aumente, haverá uma pressão para maior domesticação. Aumenta-se a produtividade e obviamente o teor de proteína cai”, explica o cientista.
Onde tudo começou – Segundo o agrônomo Lázaro Peres, o processo de domesticação se deu quando o homem se fixou e começou a coletar e replantar no mesmo local. Com isso, espécies foram selecionadas de acordo com características sensoriais e de produtividade, que variavam com mutações genéticas naturais. Ao selecionar uma planta, então, selecionava-se também uma variação genética. No início, o principal objetivo da domesticação, principalmente para gramíneas como o trigo e o arroz, era facilitar a colheita. “Em geral, plantas silvestres dispersavam sementes, mas algumas mutações interromperam ou reduziram esse processo. Assim, as sementes que não dispersavam eram replantadas. As plantas com genes que controlam a dispersão foram as primeiras selecionadas na domesticação”.
Um exemplo de fruto domesticado é o tomate, o qual tem origem na América do Sul, sendo posteriormente domesticado no México. Uma das características de sua domesticação foi o chamado “gigantismo” – o tomateiro selvagem apresenta um fruto do tamanho de uma ervilha, muito diferente do tomate que conhecemos hoje. Atualmente, os pesquisadores sabem identificar quais são os genes responsáveis pelo aumento do fruto, que foram mutações selecionadas ao longo de gerações.
Já na domesticação das gramíneas (trigo, cevada, aveia, centeio etc.), por exemplo, foram selecionadas as plantas mais produtivas e com sementes maiores. “Um trigo selvagem apresenta pouquíssimas sementes por espiga e essas sementes caem quando ficam maduras, porque a espiga é muito rígida. Com o tempo, foram surgindo mutações que fizeram com que a espiga se tornasse flexível, o que evita que o vento derrube as sementes”, conta o professor.
Um passo atrás – Antigamente as mutações eram apenas naturais e aconteciam de maneira aleatória. Hoje, com o avanço da ciência e do conhecimento em biologia molecular, os pesquisadores conseguem ativar ou inativar genes específicos das plantas, aumentando a produtividade, favorecendo a produção de determinados compostos bioativos, melhorando o sabor e o aroma etc. Em sua linha de pesquisa, Lázaro Peres estuda quais são os genes necessários para aumentar a quantidade de flavonoides no tomateiro – mais especificamente as antocianinas.
A antocianina, que faz parte do grupo dos flavonoides, é um composto com ação antioxidante e anti-inflamatória, que confere cores que vão do vermelho ao azul para os alimentos – como morango, uva, amora, cereja, repolho roxo e berinjela. Segundo o professor, na literatura, essas substâncias já foram associadas à prevenção de doenças cardiovasculares. Como as antocianinas estão em alimentos que não são consumidos com tanta frequência, o grupo optou por tentar aumentar a sua quantidade no tomate, que está mais presente em nosso dia a dia e já possui outros importantes compostos antioxidantes, como o licopeno. Os cientistas conseguiram alcançar esse objetivo, que resultou em um tomate roxo.
“Outros países também já produziram esse tomate, mas o nosso diferencial foi conseguir fazer isso sem usar transgenia. Nós desenvolvemos uma pesquisa básica na qual descobrimos mutações naturais que existiam em espécies selvagens. E combinando essas mutações pelo cruzamento entre espécies, conseguimos fazer um tomateiro com bastante antocianina”.
Embora muitos alimentos já tenham sido domesticados, ainda é possível domesticar espécies selvagens do zero. Há alguns anos, Peres e colaboradores desenvolveram o conceito de novo domestication, em que sugere recomeçar o processo de domesticação para obter melhores resultados, adaptados para a atual realidade. “Existe uma demanda muito grande para conferir resistência às plantas. As espécies selvagens são mais resistentes a doenças e fatores ambientais prejudiciais, como seca e salinidade. Nós observamos que, em certos casos, seria mais fácil domesticar a planta selvagem novamente do que tentar passar novas características para o atual tomateiro”.
O grupo de Peres foi o primeiro do mundo a demonstrar essa possibilidade em uma publicação na Nature Biotecnology em 2018, na qual os pesquisadores conseguiram domesticar uma espécie selvagem de tomateiro utilizando edição gênica. Ele destaca que essa estratégia pode ser muito relevante para a agricultura, já que nós apenas melhoramos aquilo que os nossos antepassados domesticaram, em uma época com condições climáticas completamente diferentes. “Acredito que, hoje, para obter ganhos maiores, em alguns casos precisaremos domesticar do zero”, conclui.
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