Pesquisadores da academia e da indústria têm discutido novas formas de processar os alimentos, de forma a estender a vida de prateleira dos produtos, sem perda de nutrientes ou de características sensoriais. E um dos métodos promissores é conhecido como plasma frio. O plasma frio nada mais é do que um gás contendo íons e elétrons livres que pode ser obtido pela passagem de corrente elétrica, como em um raio cruzando o ar, ou por altas temperaturas, como no sol.
“A estratégia para obter o plasma frio, ou seja, na temperatura ambiente, é aplicar rápidos pulsos elétricos com alta voltagem, mas baixa intensidade, o que impede grandes variações na temperatura. Nesses estímulos elétricos controlados, formam-se no gás substâncias reativas que podem ser usadas, por exemplo, para controle microbiológico em alimentos”, explica Jorge Gut, professor do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP e pesquisador do Centro de Pesquisas em Alimentos (Food Research Center - FoRC).
Na prática, sua aplicação mais comum se dá utilizando o ar atmosférico por meio de uma técnica conhecida como descarga de barreira dielétrica. “Entre dois eletrodos com alta voltagem, se insere um filme ou uma placa que reduz a passagem de corrente elétrica para evitar a formação de um arco voltaico, que elevaria a temperatura e iria degradar o alimento”, detalha Fabiano Fernandes, professor do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal do Ceará (UFC). “No fino espaço entre os dois eletrodos forma-se o plasma que é soprado sobre o alimento ou material a ser tratado. Como as espécies químicas formadas no plasma se decompõem rapidamente, o plasma tem que ser produzido continuamente”, acrescenta Gut.
Vantagens da tecnologia – A tecnologia é importante principalmente para alimentos que são muito suscetíveis ao tratamento térmico – técnica que consiste no aquecimento e depois resfriamento do alimento para sua preservação e segurança para o consumidor. “Você não vai querer esquentar ou resfriar uma alface, o que levaria a uma grande degradação, ou aplicar um produto químico que possa deixar resíduos no alimento. Com o plasma frio, não teríamos esse tipo de problema”, afirma Bruno Carciofi, professor do Departamento de Engenharia Biológica e Agrícola da Universidade da Califórnia Davis (UC Davis), nos Estados Unidos, e membro do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Alimentos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Essa técnica tem vantagens também em relação a outros tratamentos (não térmicos) porque atinge todas as áreas da superfície do alimento. “O plasma frio atua em todos os locais da superfície do alimento, inclusive nos mais escondidos, pois as moléculas ativas se espalham. Isso é uma diferença em relação à luz UV, por exemplo, pois essa técnica não térmica atua somente no trecho que está iluminado pelo feixe de luz UV, que é emitido em direção reta”, detalha o professor.
Testes bem-sucedidos – Na UFSC, o grupo coordenado por Carciofi obteve sucesso ao aplicar o plasma frio em alimentos já embalados. “Com o tratamento térmico, produtos enlatados, por exemplo, têm prazos de validade de mais de um ano, pois são processados depois de embalados, e assim não entram mais em contato com os micro-organismos no ambiente externo. Utilizamos uma estratégia semelhante ao gerarmos o plasma frio no ar contido dentro da embalagem, o que proporcionou a inativação das bactérias que são patogênicas aos seres humanos e das que deterioram os alimentos”, detalha o professor.
Na UFC, o grupo de pesquisadores liderado por Fernandes conseguiu recuperar a perda de nutrientes que ocorre durante a pasteurização do suco de laranja, em estudo publicado na revista Food and Bioprocess Technology, do grupo Springer. “Quando o suco é pasteurizado, acontece a degradação principalmente do limoneno (o composto que confere cheiro e gosto à fruta) que se transforma em substâncias alcoólicas, prejudicando o gosto do produto. Com o plasma frio foi possível reverter a degradação, transformando os produtos de degradação novamente em limoneno”, explica o pesquisador.
Outra aplicação desenvolvida pelo grupo de Carciofi, publicada nas revistas Food Packaging and Shelf Life e Colloids and Surfaces A: Physicochemical and Engineering Aspects, consiste no uso do plasma frio para desenvolver embalagens para alimentos. “Quando fazemos uma embalagem multicamadas, necessitamos de uma cola que una, por exemplo, dois plásticos. Com o plasma frio, além de sanitizar os plásticos da embalagem, é possível modificar a superfície a ponto de aderi-los sem danificar a sua estrutura”.
Transformação de propriedades – O plasma frio também foi capaz de modificar o aroma do café, conforme aponta estudo publicado na revista Journal of Food Processing and Preservation. “Conseguimos produzir moléculas novas que conferiram aromas diferentes ao café, abrindo a possibilidade de desenvolvermos produtos gourmet ou de maior valor agregado”, detalha Fernandes.
Segundo ele, a hipótese que pode explicar esses resultados parte da capacidade do plasma frio de simular as transformações que acontecem durante o metabolismo natural da planta. “Vimos que as espécies reativas que são formadas são muito similares aos compostos que a própria planta ou fruto estaria produzindo no seu dia a dia, com o diferencial que nós aceleramos esse processo. O que faz sentido, uma vez que estamos utilizando as mesmas espécies químicas do ar da atmosfera”.
Isso é um diferencial comparado com outras formas de modificação. “Muitas maneiras de modificar alimentos utilizam reagentes que submetem os produtos a compostos químicos que não são considerados saudáveis ou apropriados para o consumo. E muitas vezes esses compostos acabam sendo incorporados pelos alimentos”.
Mais estudos são necessários - No entanto, diversos resultados envolvendo o plasma frio levantam controvérsias. Isso porque não se sabe exatamente quais compostos podem ser formados durante a sua geração e aplicação. “Para ter o conhecimento pleno do que acontece no plasma frio, e assim assegurar que as transformações esperadas aconteçam e não tragam prejuízos à saúde, são necessários mais estudos”, afirma Gut.
O passo necessário para se obter esse conhecimento é desenvolver a modelagem e a simulação física e química do plasma. “É um processo complexo do ponto de vista químico, pois a movimentação dos elétrons durante o pulso de alta voltagem gera uma cascata de reações com diversas espécies químicas excitadas e que reagem entre si. O processo é muito mais complexo para mistura de gases; uma vez que para o ar atmosférico há uma gama extensa de compostos que podem se formar a partir da interação entre nitrogênio, oxigênio e umidade, além das interações dessas substâncias com o alimento. É complexo também do ponto de vista físico, pois as reações químicas envolvendo elétrons acontecem em velocidades muito superiores a reações químicas comuns, além da movimentação do gás que é estimulada pelas microdescargas elétricas”, detalha.
Por esse motivo, o plasma frio ainda está em processo de avaliação pelas agências regulatórias, o que exige estudos rígidos e que podem ser demorados. “Para poder fazer qualquer aplicação direta em um alimento, é necessário que as agências regulatórias atestem que essa aplicação é segura. E para isso é necessário grande controle do processo”, aponta Fernandes.
Além disso, a aplicação é mais demorada pelo fato de o plasma frio ser considerado um procedimento de irradiação, pois, na formação do plasma, há alguma emissão de raios UV. “Há pouco tempo, nenhum procedimento que envolvesse irradiação de alimentos era permitido por não haver conhecimento sobre os elementos químicos aplicados nos alimentos”, detalha o professor. No entanto, com o avanço dos estudos, essa concepção foi mudando, ao ponto que, foi aprovado na Europa, em 2016, o uso das luzes UV para alimentos. Isso simboliza uma mudança de paradigma que pode levar à aprovação do plasma frio nos próximos anos.
“Nessa avaliação foi considerado que o produto final, após o processamento, não tenha a presença de componentes tóxicos e por isso a técnica poderia ser utilizada. Desta forma, há a expectativa de grandes indústrias, que já têm se preparado e desenvolvido seus equipamentos, para uma regulamentação no futuro”, finaliza Fernandes.
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