Pesquisadores da UFRN vão avaliar o valor nutricional de carne de caça da Amazônia

Objetivo do estudo é obter informações sobre a composição de preparações com carnes como paca, mutum e tartaruga para inserir em tabelas de composição de alimentos. Estima-se que na Amazônia Brasileira sejam consumidas, para fins de subsistência, cerca de 90 mil toneladas de carne de caça por ano.

Nutrição na medida

Paca assada à moda pururuca, iscas de jacaré à milanesa, cotia ensopada com cará e mutum guisado com palmito são exemplos que constam do cardápio e da cultura alimentar de algumas comunidades tradicionais brasileiras, mas pouco se sabe sobre o impacto desses alimentos no estado nutricional das pessoas. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte está analisando o valor nutricional das carnes de caça consumidas por populações tradicionais na região Amazônica, e deve sanar em parte o problema.

“Nosso objetivo é fazer a análise dos macro e micronutrientes dessas carnes de caça e incluir a informação nas tabelas de composição de alimentos como a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos, a TBCA, do Centro de Pesquisas em Alimentos. Isso é uma inclusão importante, pois as tabelas, quando bem estruturadas e padronizadas, servem como um direcionador para o aconselhamento nutricional”, afirma Michelle Jacob, professora do Departamento de Nutrição da UFRN, que lidera o estudo na UFRN ao lado da professora juliana Maia.

Jacob explica que o trabalho está inserido no esforço de maior compreensão sobre a biodiversidade alimentar do país. “Embora as carnes de caça sejam alimentos amplamente consumidos por essas populações na Amazônia, seus valores nutricionais ainda não foram analisados de maneira sistemática”, diz.

Além do aconselhamento, estudos de consumo alimentar populacionais costumam identificar a qualidade da alimentação e as carências nutricionais. “Mas para que esses estudos sejam efetivos, são necessários dados mais precisos sobre a composição química de alimentos consumidos por populações fora dos grandes centros, e o papel de pesquisadores na área de análise e tabelas de composição química é produzir e divulgar esses dados’, afirma Eliana Bistriche Giuntini, que gerencia a TBCA.

Inicialmente, será analisado o valor nutricional das carnes de tartaruga, mutum e paca           consumidas na Amazônia. O estudo está inserido em um projeto, coordenado pelo pesquisador Daniel Tregdigo, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá –entidade vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, com sede em Tefé (AM). Essa parceria possibilitou que ribeirinhos doassem músculos e vísceras dos animais para os pesquisadores. As atividades estão em conformidade com a autorização obtida do Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (SISBIO) – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

As amostras de alimento foram conservadas em nitrogênio líquido durante todo o trajeto para que não deteriorassem, nem perdessem suas propriedades nutricionais. Na primeira etapa, o material é preparado (tem sua umidade retirada) na sede do Instituto Mamirauá, em Tefé (AM), e depois segue de avião até a UFRN, em Natal (RN), e a Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto (SP), para análises mais detalhadas.

“Além dos nutrientes, estamos analisando também se há metais pesados nas amostras de carne de caça. A região é uma zona de garimpo e o mercúrio usado nessa atividade ilegal contamina a água e o solo e pode ser absorvido pelos animais. Queremos saber se esses alimentos são seguros para o consumo humano”, diz Juliana Maia.

Vale lembrar que o consumo dessas carnes de caça é permitido, de acordo com a legislação brasileira, quando necessária à subsistência, o que é o caso de comunidades tradicionais, tais como os ribeirinhos e povos indígenas que vão doar amostras do produto para fins de pesquisa. São espécies que estão ameaçadas pela caça ilegal e, com a morte desses animais, corre-se o risco da chamada defaunação da floresta – diminuição acelerada de espécies animais, com efeitos negativos sobre demografia e diversidade biológica.

Estima-se que na Amazônia Brasileira sejam consumidas, para fins de subsistência, cerca de 90 mil toneladas de carne de caça por ano. Defensores da caça sustentável enfatizam que o consumo de carne de caça entre povos indígenas e outras populações rurais têm um significado cultural e necessidade motivada pela insegurança alimentar provocada pelo acesso limitado à carne de animais domesticados.

Um estudo realizado por pesquisadores da FIOCRUZ-Amazônia concluiu que o consumo de carne de caça – de animais como roedores, antas, porcos selvagens, veados e aves – pode reduzir as taxas de anemia de crianças ribeirinhas. De acordo com estimativas deste estudo, as taxas de anemia por deficiência de ferro em crianças ribeirinhas poderiam aumentar cerca de 10% em termos relativos – mais de 3.000 crianças -, caso o acesso à carne de caça fosse restringido. Por outro lado, se as crianças moradoras de zonas rurais mais vulneráveis do Amazonas ingerissem uma refeição adicional de carne de caça a cada semana, a prevalência de anemia reduziria em cerca de 20% em termos relativos.

“Como se vê, são alimentos que não podem ser ignorados quando se pretende estudar a biodiversidade alimentar e o aconselhamento nutricional dessas populações”, afirma Jacob.

Outro padrão – As análises com as amostras doadas pelos ribeirinhos estão ainda em fase inicial. Antes de serem feitas, os pesquisadores da UFRN realizaram uma vasta revisão bibliográfica, o que os ajudou a desenhar o estudo e incluir novos critérios para a análise nutricional das carnes de caça na Amazônia.

“Antes dessa revisão sistemática, acreditávamos que encontraríamos mais ferro em carnes vermelhas do que em brancas. Essa é uma visão tradicional baseada na carne de animais domesticados: quanto mais vermelha a carne, maior a quantidade de ferro presente. Isso por causa da quantidade de mioglobina, uma proteína da carne que contém ferro, assim como a hemoglobina presente nos glóbulos vermelhos do sangue. No entanto, isso não é uma verdade absoluta no contexto de animais silvestres. O que vimos no nosso estudo é que não necessariamente a carne de uma ave silvestre vai ter menos ferro que a de um mamífero silvestre”, diz Michelle Jacob.

A pesquisadora explica que a revisão mostrou que para animais silvestres é preciso considerar a forma de abate. “Isso deixa a análise da composição nutricional da carne de caça muito mais complexa. Em relação aos pombos (mutum), por exemplo, diferentemente das aves domesticadas, vimos que o corte mais rico em ferro é o peito e não a coxa. Acredita-se que isto esteja relacionado com o local onde o animal recebe o tiro para seu abate, que fica com mais sangue”, explica a pesquisadora.

Outro achado é que a composição química de peixes, por exemplo, pode mudar entre as estações. Segundo Jacob, a alimentação dos animais muda durante as estações, então é provável que o valor nutricional da carne do animal também mude. “Isso faz com que pesquisas dessa natureza prevejam a coleta de amostras em estações diferentes para uma melhor compreensão da composição nutricional dessas espécies”.

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