Estima-se que de 1% a 2 % da população mundial adulta tenha alergia ao leite, e no caso de crianças com menos de três anos estes números são ainda maiores: de 5% a 8 %. Considerado pela Food and Drug Administration (FDA) como um dos oito alimentos que mais provocam alergias alimentares (os outros são soja, ovo, nozes, amendoins, peixes, trigo e crustáceos), o leite também é o principal componente da dieta de crianças abaixo de três anos de idade: justamente a fatia da população mais acometida por alergias alimentares. No mundo todo, estima-se que entre 6% e 8 % das crianças menores de três anos e 3% dos adultos tenham alergia a algum tipo de alimento.
“É um problema sério e já há algum tempo procuramos maneiras de reduzi-lo. Hoje em dia, a única forma de lidar com a questão é excluir da dieta o alimento causador da alergia. Só que o leite é muito importante na primeira infância e, neste caso, sua retirada da dieta pode provocar problemas nutricionais para o alérgico. Sem contar que muitos alimentos levam leite em sua composição, ou proteínas do leite incluídas como ingredientes, o que dificulta sua exclusão da dieta”, explica a cientista de alimentos Vanessa Biscola, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center).
Na tentativa de reduzir o potencial alergênico do leite, Vanessa isolou bactérias láticas fermentadoras (Enterococcus faecalis), que produzem enzimas responsáveis pela quebra das proteínas dos alimentos que estão fermentando, e testou a possibilidade de que essas bactérias, ao quebrar as proteínas, reduzam a capacidade do alimento de provocar reação alérgica.
“As alergias alimentares, em sua maioria, estão conectadas às proteínas dos alimentos. Então me perguntei: será que a bactéria, quebrando a proteína, não poderia diminuir a alergia ao alimento? Para saber a resposta, procurei a bactéria mais proteolítica possível, aquela que conseguiria quebrar as proteínas com maior eficácia, e a isolei. Depois a inseri num alimento, fermentei o alimento e coloquei esse alimento em contato com o soro do sangue de pacientes alérgicos. E descobri que a bactéria que eu usei para fermentar o leite de fato reduziu o potencial alergênico do alimento”, resume Vanessa.
Ela diz que, numa proteína, há diversos sítios de ligação antígeno-anticorpo, chamados epítopos. Na proteína do leite são mais de 30. Vanessa partiu do pressuposto de que, quando essa proteína é quebrada, modificam-se esses sítios de ligação. Dependendo da maneira como se dá essa modificação, o anticorpo não reconheceria mais a proteína e, portanto, não haveria resposta alérgica.
“Quando fizemos os testes para saber se aquele hidrolisado (proteína quebrada) era reconhecido pelo anticorpo dos pacientes alérgicos, vimos que ele era menos reconhecido e provocava menos alergia, mas como ainda havia ali epítopos íntegros, que poderiam ser reconhecidos, então a resposta à alergia não foi totalmente negativa”, explica a pesquisadora. Segundo ela, a grande dificuldade é que não é possível dizer o local específico em que a enzima produzida pela bactéria vai quebrar a proteína. Isso depende do tipo de bactéria, da condição da fermentação e da matriz alimentar em que o procedimento está sendo feito.
“Como tivemos resultados muito bons com o leite, comecei a estudar também a soja. E descobri que a bactéria Enterococcus faecalis, além de ter atividade forte principalmente contra a caseína do leite, também apresentou resultados bons contra as duas principais proteínas da soja que causam alergia.” A caseína, juntamente com a betalactoglobulina e a alfalactalbumina, são as maiores responsáveis pelas alergias ao leite que algumas pessoas apresentam.
Vanessa ressalta ainda que os estudos foram feitos in vitro e que, para saber se as bactérias funcionam mesmo para reduzir resposta alergênica em seres humanos, a próxima etapa seria fazer estudos in vivo. Parte do trabalho foi desenvolvida na França, no INRA (Institut Nationale de La Recherche Agronomique), com quem o FoRC mantém uma sólida parceria.
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