Papel da nutrição no tratamento de doenças ultra raras está sendo testado no Rio Grande do Norte

Pesquisadores da UFRN e do Hospital Universitário Onofre Lopes estão acompanhando pacientes com Síndrome da Quilomicronemia Familiar (SQF) e Síndrome Berardinelli-Seip. Doenças raras que estão relacionadas com problemas no metabolismo de gordura.

Nutrição na medida

Duas doenças genéticas ultra raras e relacionadas com distúrbios no metabolismo de gordura estão sendo estudadas a fundo no Rio Grande do Norte. Os resultados do acompanhamento nutricional de mais de 50 pacientes já dão mostras de como a alimentação pode contribuir para a qualidade de vida, mesmo em dietas extremamente restritivas.

“A Síndrome da Quilomicronemia Familiar (SQF) e a síndrome Berardinelli-Seip são raríssimas. No entanto, no interior do Rio Grande do Norte, devido a casamentos consanguíneos, há uma prevalência maior dessas doenças genéticas. Existem cerca de 70 casos registrados de SQF no mundo inteiro, sendo 16 só no Rio Grande do Norte. Já a síndrome de Berardinelli-Seip tem prevalência um pouco mais alta e temos mais de 50 casos identificados ou diagnosticados no Estado”, explica Bruna Zavarize, professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e que coordena o atendimento ambulatorial em nutrição desses pacientes no Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal (RN).

As duas doenças são passadas hereditariamente e é preciso a pessoa herdar um gene defeituoso do pai e outro da mãe para que qualquer uma delas se manifeste. O casamento entre primos de primeiro grau, por exemplo, de famílias que têm esses genes, explica a maior incidência dessas duas doenças no Rio Grande do Norte.

No caso da SQF, o paciente não produz a lipoproteína lipase (LPL), enzima que metaboliza a gordura. Dessa forma, os lipídios ficam circulando no sangue e os níveis de triglicérides desses indivíduos são extremamente altos. Como consequência da doença, há a recorrência de pancreatites, ou até a perda da função do órgão, além de complicações neurológicas, entre outros problemas de saúde.

“O papel da nutrição nesses casos é controlar a ingestão de lipídios de todos os tipos, pois para esses pacientes não existe ‘gordura boa’, como a do abacate ou do azeite, por exemplo. Para se ter uma ideia, o índice de triglicérides no sangue é considerado normal quando está abaixo de 150 mg/dL. No caso desses pacientes, ele pode chegar a valores superiores a 10.000 mg/dL. Por isso, eles precisam de uma dieta extremamente restritiva em gordura. Enquanto considera-se que uma dieta saudável contenha cerca de 60 a 80 g de gordura por dia, na deles ela precisa cair para 15 g ao dia”, explica Zavarize.

Além de ser praticamente impossível cortar toda a gordura de uma dieta, os lipídios são nutrientes essenciais, por exemplo, para a formação da bainha de mielina – espécie de capa protetora dos neurônios e que facilita as sinapses – e de hormônios lipossolúveis, como é o caso dos hormônios da tireoide, além de serem veículos para as vitaminas A, D, E e K.

Entre as orientações dietéticas, até o preparo dos alimentos para esses pacientes é alterado. Sai de cena o uso de refogados com óleo, azeite ou manteiga e entram preparos mais simples, como por exemplo, o arroz cozido apenas na água. Outra recomendação é o consumo de frutas e hortaliças para suprir minerais e oferecer outras fontes de energia.

“Também precisamos levar em consideração o custo dos alimentos. Em geral, esses pacientes são pessoas com baixo poder aquisitivo. Por isso, damos preferência ao peito de frango, que tem pouca gordura, ao invés de carnes bovinas mais nobres e sem gordura, que são muito caras”, diz a pesquisadora.
Algo interessante que os pesquisadores descobriram é que o camarão – famoso por ser fonte de colesterol – é uma boa fonte nutricional para os pacientes com SQF. “O Rio Grande do Norte é um grande produtor de camarão e o alimento é mais acessível por aqui. Apesar de ser rico em colesterol, o que não é um problema para esses pacientes, ele tem pouca gordura no total. Portanto, uma refeição com peixe magro, camarão e verduras ricas em fibras é uma ótima opção. Claro que não estou falando em uma moqueca com leite de coco e azeite de dendê”, diz. Cabe esclarecer que o colesterol não representa problema, porque ele está presente em quantidade muito pequenas nos alimentos, na ordem de mg, mesmo em alimentos considerados ricos em colesterol.

No ambulatório do Hospital Universitário Onofre Lopes os pacientes são cadastrados, atendidos e seguem um acompanhamento nutricional gratuito. Há um desejo em ampliar o serviço e além de atendimento médico e nutricional, os pacientes passem por tratamentos com psicólogos também.
“Por ser uma doença de difícil diagnóstico, são pessoas com uma vida repleta de complicações de saúde. A condição de muita gordura circulando atrapalha a memória e o raciocínio, por exemplo. É comum eles terem a fala mais lenta e esquecimentos como se houvesse um declínio cognitivo”, explica. A dieta, apesar de bem restritiva, melhora essa condição e a qualidade de vida de um modo geral.

Zavarize conta que o tratamento costuma ser mais bem aceito pelos pacientes mais jovens, que estão na faixa dos 20 anos. “Eles percebem muito rapidamente a melhora a partir da mudança alimentar e ficam animados com a nova qualidade de vida. Já os mais velhos tendem a ser mais resistentes, pois já passaram por muitos problemas”, afirma.

Para os pacientes com síndrome Berardinelli-Seip a indicação de dieta é completamente diferente. A doença se caracteriza pela ausência total do tecido adiposo, responsável por armazenar lipídios no organismo. “Embora rara, é uma síndrome relativamente fácil de ser identificada, pois os pacientes costumam ter características no corpo e na face bem marcantes. Como não têm tecido adiposo, as crianças costumam parecer muito musculosas e com uma barriga protuberante por causa do aumento do fígado”, conta.

Para esses casos, o ambulatório prioriza uma dieta mais balanceada, com atenção especial aos carboidratos e às quantidades ingeridas. “Como são as células de gordura que produzem a leptina, conhecido como hormônio da saciedade, esses pacientes sentem muita fome. E como muitos dos pacientes são pessoas de baixa renda, e em muitos casos em situação de insegurança alimentar, nosso trabalho é todo baseado no custo dos alimentos e na facilidade de acesso a eles”, conta.

A fome excessiva não vem acompanhada do ganho de peso, pois eles não têm tecido adiposo para armazenar a gordura. “Todo esse excedente de gordura é estocado no fígado, que aumenta de tamanho. É uma fome fisiológica. Por isso, nesses casos devemos controlar a qualidade dos alimentos. Focamos no consumo de alimentos ricos em fibras para o controle glicêmico. É preciso inserir saladas cruas, folhosas em grandes porções, além de aveia, linhaça, chia, gergelim que atuam nessa questão da saciedade sem aumentar a glicemia”, afirma.

Zavarize conta que em 2024, pesquisadores da UFRN, orientados por ela, vão iniciar uma nova etapa no projeto: avaliar os índices de vitaminas e minerais nesses pacientes. "Acredito que iremos encontrar carências graves de vitaminas e minerais tanto nos pacientes com SQF, quanto na síndrome de Berardinelli-Seip. Não só pelo histórico alimentar dos pacientes, mas também como condição das doenças. Os resultados do estudo vão nos ajudar a entender a fisiopatologia dessas doenças e no aconselhamento nutricional dos pacientes”, afirma.

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