Nutrientes podem interagir com remédios, alterando seus efeitos

Alimentos que nós ingerimos habitualmente, como queijos, brócolis, acelga ou suco de laranja contêm ingredientes capazes de afetar a eficácia de determinados tratamentos medicamentosos.

Você sabia?

A interação entre medicamentos e os nutrientes presentes nos alimentos vem sendo objeto de estudo por pesquisadores do mundo todo desde a segunda metade do século XX, mas somente nos últimos anos é que trabalhos e ensaios clínicos têm exemplificado que a administração de alguns fármacos junto com determinados nutrientes pode modificar a resposta terapêutica, alterando não só a ação do medicamento como a eficácia do tratamento.

"Nós não temos capacidade de estabelecer todas as interações medicamentosas, é impossível. Até porque, na prática, tudo pode interagir. Mas há aquelas que não têm a menor importância clínica, no sentido de interferir no tratamento. E há algumas que interferem”, resume o professor Moacyr Luiz Aizenstein, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), autor do livro Fundamentos para o Uso Racional de Medicamentos (Editora ELSEVIER, 2016), que está em sua terceira edição.

Efeitos já conhecidos – A interação entre os anticoagulantes e certos tipos de alimentos são um bom exemplo. “A vitamina K, presente em alimentos como acelga, couve, espinafre, brócolis e outras folhas verdes, tem um papel importante na coagulação. Se o indivíduo está tomando um anticoagulante e ingere alimentos ricos em vitamina K, o tratamento pode ser prejudicado. O anticoagulante procura evitar a formação de trombos, e a vitamina K favorece a coagulação.”

Já a ingestão de alho beneficia a ação dos anticoagulantes, de acordo com Roseane Maria Salvi e Karen Magnus, organizadoras do livro Interação Fármaco-Nutriente: Limitação à Terapêutica Ocupacional (EdiPUCRS, 2014). Segundo tabela elaborada por elas com base em informação da literatura disponível, a ingestão de suco de laranja, por exemplo, pode diminuir a biodisponibilidade da eritromicina, um antibiótico que serve para curar desde infecções do trato respiratório até amebíase intestinal. 

Aizenstein explica que a maioria dos fármacos é metabolizada no fígado. “Para o indivíduo que tem insuficiência hepática, deve-se administrar medicamentos que não sejam metabolizados no fígado. Agora, se não for possível, esse paciente não pode ingerir álcool ou alimentos muito gordurosos, porque ele vai sobrecarregar duplamente o fígado.”

Por outro lado, diz o farmacêutico, alimentos ricos em óleos e gorduras favorecem a absorção de vitaminas lipossolúveis, como as vitaminas A, D, E e K. “A ingestão de lipídios aumenta a secreção de ácidos biliares que servem para digerir os alimentos. Esses ácidos emulsionam essas vitaminas, e isso facilita sua absorção.” A vitamina A está presente na gema do ovo, no fígado e em alimentos ricos em carotenoides, que se transformam em vitamina A no organismo. Já a vitamina D está presente em alimentos como carnes, ovo, leite e queijos. E a vitamina E pode ser encontrada em castanhas e salmão.

Segundo Aizenstein, o alto consumo de substâncias como café, chá e chocolate pode potencializar o efeito da teofilina, usada no tratamento da asma. Ele afirma também que o suco concentrado de grapefruit causa um aumento na biodisponibilidade dos hipertensivos nifedipina e felodipina, por inibirem seu metabolismo (e quanto mais lento o metabolismo, mais tempo o medicamento fica em contato com o organismo). “Essa interação pode provocar efeito tóxico desses medicamentos, mesmo quando usados em pequenas quantidades.”

Todo cuidado é pouco – Aizenstein também chama a atenção para medicamentos usados no tratamento de doenças psiquiátricas que atuam no sistema nervoso central. Sobretudo os inibidores da enzima MAO (monoaminoxidase) e sua associação a alimentos que contêm tiramina. “Caso um paciente associe o uso desses inibidores com alimentos que têm tiramina, tais como queijo, vinho tinto ou produtos defumados, pode ter crises de hipertensão. A MAO é uma enzima que metaboliza a tiramina. Ao inibir a MAO, a tiramina estará em grande quantidade, e ela é uma substância hipertensora. É uma associação muito grave. Conheço uma pessoa que foi parar no hospital por isso. Ela foi numa festa de queijos e vinhos e estava tomando esse tipo de medicamento. Teve uma crise hipertensiva.”

Outros medicamentos que atuam no sistema nervoso central também estão sujeitos a interações com nutrientes, como antidepressivos cíclicos, ansiolíticos e anticonvulsivantes. Segundo o livro organizado por Roseane Maria Salvi e Karen Magnus, café, chá, espinafre, cereais integrais e alimentos ricos em fibra interagem com os antidepressivos cíclicos na fase em que os medicamentos estão sendo absorvidos pelo organismo, e podem diminuir sua biodisponibilidade (Veja abaixo texto sobre as etapas em que se divide o caminho do medicamento no organismo). Já uma dieta gordurosa, hiperlipídica, favoreceria a biodisponibilidade de ansiolíticos, como o diazepan, e de anticonvulsivantes, como a carbamazepina e a fenitoína, também na fase de absorção do medicamento.

No geral, a indicação é que durante o tratamento medicamentoso se suspenda a ingestão de nutrientes que possam interagir com eles. Quando se trata de uma interação bastante conhecida e comprovada, a bula do remédio pode trazer as restrições alimentares que devem ser obedecidas durante o tratamento.

Álcool nunca – Moacyr Aizenstein salienta que há pelo menos duas razões para uma pessoa não beber álcool quando está tomando um remédio. “Em primeiro lugar, se ela está tomando algum remédio é porque tem alguma patologia. E o álcool é um imunossupressor: diminui a capacidade do organismo de se defender, suprime nossos mecanismos de defesa. Essa é uma razão e o conselho serve para qualquer tipo de patologia. E tem outro aspecto que é o efeito do álcool no organismo: o álcool é um depressor do sistema nervoso central.”

O professor esclarece que quando um paciente está tomando qualquer fármaco que tem ação no sistema nervoso central, seja um ansiolítico, sedativo, anestésico ou antidepressivo, a ingestão de álcool tem um efeito sinérgico, potencializando o efeito do fármaco. “Há um caso clássico de uma paciente na Inglaterra que tomava ansiolítico, foi numa festa, bebeu e entrou em coma. A depressão do sistema nervoso central foi sinérgica. Então, não se deve associar.”

Aizenstein lembra que o álcool também é um indutor enzimático. E ele pode induzir enzimas responsáveis por metabolizar os fármacos. “Ao aumentar a capacidade de uma enzima desse tipo, pela ingestão de álcool, o medicamento será metabolizado mais intensamente, e isso afeta sua concentração no organismo, diminuindo sua eficácia.”

A interação de paracetamol (Tylenol ®) com álcool pode ter consequências graves para o fígado, alerta o professor. “Esse efeito decorre do uso de paracetamol em usuários crônicos de álcool. Mas o próprio paracetamol, em grandes quantidades, é tóxico.”

Além disso, ele chama a atenção para a associação do álcool com o metronidazol (um antiparasitário), o cetoconazol (um antifúngico), as cefalosporinas (antibióticos) e os hipoglicemiantes do grupo das sulfoniluréias. Pode causar acúmulo de aldeído acético no organismo, uma substância tóxica. “No organismo, o álcool é metabolizado a aldeído, depois ácido acético e água. Quando a reação para no aldeído e ele se acumula, o indivíduo começa a ter dor de cabeça, náusea, vermelhidão etc.”

Genética também conta – Por fim, ressalta Aizenstein, somos geneticamente diferentes, por conta de polimorfismos (alterações) que todos nós carregamos. “Entretanto, compreensivelmente, os testes clínicos que são feitos para colocar os fármacos no mercado tomam como referência a média da população. Os estudos são conduzidos em condições ideais: as pessoas estudadas se alimentam como a média da população, e a indústria evidentemente não vai testar a interação com cada alimento. Dessa forma se produz o padrão que nós lemos na bula do remédio. Mas nós não somos padronizados: nem na origem, nem na alimentação, nem nos hábitos...”

Curiosidade

Os cientistas estudam a administração de fármacos e sua eficácia sob dois diferentes aspectos: o da farmacocinética e o da farmacodinâmica. A primeira é relativa à passagem do medicamento pelo organismo e de como ele é absorvido, distribuído, metabolizado e excretado. Diz respeito a como ele se comporta no organismo do paciente e como este se defende do fármaco, uma substância estranha. Já a farmacodinâmica refere-se a aspectos da ação do medicamento no local desejado. É o estudo dos efeitos dos fármacos e de seu mecanismo de ação no organismo.

No caso da farmacocinética, a interação entre o fármaco e outras substâncias (sejam elas nutrientes, fitoterápicos ou outros fármacos, por exemplo), pode ocorrer em qualquer uma das quatro etapas do caminho que o medicamento faz no organismo: absorção, distribuição, metabolização ou excreção. Na linguagem dos especialistas, os resultados dessas interações podem ser sinérgicos (quando há potencialização da função do medicamento ingerido) ou antagônicos (quando acontece o oposto).
“Geralmente, o que acontece quando há antagonismo no caso de nutrientes e fármacos é que o alimento prejudica a ação do medicamento. O oposto, o medicamento atrapalhando a absorção de algum nutriente dos alimentos, é menos comum, porque o medicamento é ingerido em doses muito pequenas”, diz Aizenstein.

Saiba mais: 

Alimentos podem interagir com medicamentos e prejudicar o tratamento

Imagem: Bruno Glätsch por Pixabay">Pixabay/CC


compartilhar

Comentários