Não há consenso científico sobre doenças diretamente conectadas pela mídia ao açúcar branco, mas ingestão em excesso deve ser evitada

Você sabia?

12/02/2020 - É comum encontrarmos em blogs e revistas leigas a máxima de que o açúcar refinado branco causa danos à saúde. Alguns veículos inclusive advogam – explicitamente ou não – a substituição dele por outros tipos de açúcar, como o mascavo ou o demerara, sob o argumento de que seriam menos prejudiciais à saúde e/ou que teriam mais nutrientes do que o açúcar refinado branco.

Tendo em vista as informações divulgadas pela mídia leiga, a nutricionista Brunna de Oliveira Carvalho resolveu investigar, em seu trabalho de conclusão do curso, se a associação direta do consumo do açúcar refinado a determinadas doenças tinha respaldo na literatura científica. O trabalho foi orientado pelo professor Eduardo Purgatto, integrante do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center) e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP (FCF/USP).

“Em primeiro lugar, cabe ressaltar que os três tipos de açúcar contêm sacarose, muitas vezes vista como a vilã do açúcar ‘branco’. O açúcar refinado tem 98,5% de sacarose, o demerara deve conter minimamente 96% e o mascavo, para ser considerado como tal, deve conter 90%”, explicou a pesquisadora, que acaba de concluir o curso de nutrição na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP).

Quanto à maior quantidade de nutrientes e compostos bioativos nos açúcares demerara e mascavo, um argumento comum na mídia, a pesquisadora diz que é verdade; porém, para que o indivíduo se beneficiasse deles, teria de ingerir uma quantidade altíssima de açúcar. “Por isso, não é sensato considerar os açúcares mascavo e demerara como fontes destes nutrientes.”
De acordo com ela, é preciso cuidado com algumas informações veiculadas pela mídia. “Até que ponto há benefícios relevantes em substituir o açúcar refinado por outros tipos de açúcar, como o mascavo e o demerara? Existem evidências suficientes que justifiquem essa troca?”, questiona a pesquisadora.

Para responder a essas perguntas, Brunna começou buscando por meio do Google, na mídia leiga, as informações veiculadas por matérias e posts sobre o tema, usando como “tags” expressões como açúcar refinado, açúcar mascavo, açúcar e obesidade, açúcar e câncer.....  “Elenquei mais de 20 doenças que determinadas matérias associavam especificamente ao consumo de açúcar refinado – de stress à dor na coluna. Nessa primeira triagem, surgiram doze blogs e doze revistas digitais. Então, trabalhei com as cinco doenças mais citadas: obesidade, câncer, doença cardiovascular, doença hepática gordurosa não alcoólica e vício em açúcar. Por fim, selecionei o material por data, usando como amostragem apenas matérias e posts publicados a partir de 2017. Sobraram cinco blogs e cinco revistas digitais”, explica.

Ela concluiu que não existe na literatura científica nenhuma associação definitiva do açúcar refinado, especificamente, com essas doenças, embora haja artigos que dizem que o consumo de açúcar pode colaborar para o aparecimento de determinadas enfermidades. “Tomemos, por exemplo, a obesidade. Trata-se de uma doença complexa, que não tem um fator específico: há o fator psicológico, o ambiental, o social, o metabólico... Uma coisa que se sabe é que produtos muito palatáveis podem levar o paciente a consumir muito e isso pode contribuir para o desenvolvimento da obesidade. Mas não é possível associar o consumo específico do açúcar refinado branco diretamente ao desenvolvimento da obesidade. E esse mesmo padrão se repete para as demais doenças que investiguei.”

Outra máxima encontrada na mídia leiga é que o açúcar branco tem capacidade viciante semelhante à encontrada em drogas ilícitas e álcool. “Alguns autores defendem que o consumo excessivo de açúcar, independentemente do tipo, pode colaborar para uma mudança no contínuo da saciedade, gerando um ciclo no qual o indivíduo pode ser conduzido a consumir cada vez mais açúcar, apesar da falta de um déficit energético real. Assim, esse indivíduo, ao consumir o alimento em questão, em vez de guiado pela necessidade de equilibrar seu organismo, passaria a se guiar pelo prazer do consumo do alimento.”

De acordo com Brunna, o principal sistema envolvido nessas possíveis mudanças é o sistema que estimula a secreção de dopamina nas áreas em que estão neurônios responsivos a esse neurotransmissor (o que também acontece com as drogas, lícitas e ilícitas). “Apesar de alguns estudos indicarem que alimentos como o açúcar ativam as mesmas vias cerebrais que as drogas e o álcool, é importante esclarecer que nenhum estudo conseguiu comprovar uma possível capacidade viciante do açúcar refinado branco.”

Quanto às doenças cardiovasculares (DCV), de acordo com a nutricionista, grande parte dos estudos apontam para a relação entre consumo de açúcares no geral, não somente açúcar refinado, e fatores de risco para DCV, como obesidade, por exemplo, mas não relacionam diretamente com o açúcar refinado. “Assim, o que se estabelece na literatura científica é uma relação indireta. E o que a mídia leiga apresenta é o consumo de açúcar refinado branco como causa direta do quadro.”

Brunna afirma que as matérias divulgadas na imprensa não traziam uma associação entre o consumo de açúcar, independentemente do tipo, e uma forma específica de câncer, apenas apresentavam o consumo como uma causa certa do aparecimento da doença. “Mas uma revisão da literatura nos leva a crer que o argumento de que o consumo de açúcar refinado está relacionado diretamente com o aparecimento de câncer não se sustenta. Em contrapartida, fica clara a importância de uma alimentação equilibrada e sem excessos, na prevenção da comorbidade, já que fatores como a obesidade, por exemplo, podem favorecer o aparecimento do câncer.”

Compensação – A nutricionista afirma ainda que, muitas vezes, a retirada do açúcar da dieta diária, sugerida nem sempre explicitamente por veículos da mídia leiga, pode levar o indivíduo a compensar a ausência do alimento ingerindo outros alimentos tão ou mais ricos em açúcar. “A pessoa pode começar a agir compensando: tira o açúcar do café, mas compensa em outras coisas, como bolacha doce, ou mesmo doces em geral ... E consumir o açúcar escondido nos alimentos pode ser muito mais prejudicial e colaborar muito mais para o aparecimento dessas doenças, sem necessariamente ser o único causador, do que a colherinha de açúcar que ela põe no café.”

Ela também atenta para o fato de que, como os açúcares demerara e mascavo contêm um pouco menos de sacarose do que o refinado, quando substituem um pelo outro, muitas vezes, as pessoas usam maior quantidade deles do que usariam se estivessem consumindo o branco. “Neste caso, o que influencia não é necessariamente a variação da quantidade de sacarose entre os açucares, mas sim a percepção do consumidor sobre as diferenças de sabor. Em alguns casos, o consumidor, na ânsia de alcançar um sabor próximo ao encontrado no açúcar refinado branco, pode aumentar a quantidade consumida de outros tipos de açúcar ao substitui-lo.”

Na gôndola do supermercado, as diferenças de cor entre os diversos tipos de açúcar disponíveis também têm um certo impacto sobre o consumidor. O açúcar branco é identificado, muitas vezes, como um produto “menos puro” do que os outros.

Diferenças – O açúcar refinado branco é obtido por meio do refino do açúcar cristal dissolvido. De acordo com a publicação Tecnologia da Fabricação do Açúcar, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, a diferença básica entre os processos de obtenção do açúcar demerara e do açúcar cristal branco está na fase de clarificação. Para o açúcar demerara, diz a publicação, a clarificação é realizada empregando-se apenas leite de cal, enquanto para o açúcar cristal branco, são empregados leite de cal e anidrido sulfuroso (um sulfito). O anidrido sulfuroso é uma substância obtida por meio da combustão de enxofre mineral.

“Difícil encontrar na literatura artigos sobre os potenciais problemas relacionados ao uso de cal e anidrido sulfuroso ou sulfito para o clareamento do açúcar. Outros produtos consumidos pelas pessoas também recebem tratamentos com essas substâncias. Diversos tipos de vinho são sulfitados antes da fermentação, visando eliminar bactérias do mosto que podem afetar a produção do vinho, produzindo sabores e aromas desagradáveis. Já a cal tem sido utilizada no refino de óleos vegetais”, esclarece o professor Eduardo Purgatto.

De acordo com ele, no caso do sulfito, a ADI (acceptable daily intake) é de 0.7 miligramas (mg) por quilograma (kg) de massa corpórea. Para uma pessoa de 70 kg, seriam 49 mg por dia. Segundo o Codex Alimentarius, o máximo permitido de sulfito nos açúcares refinados é de 15 mg por kg. “Ou seja, uma pessoa deveria comer mais de 3 kg de açúcar refinado por dia para ultrapassar o aceitável no que se refere ao sulfito. Por isso o FDA classifica a substância com GRAS – generally recognized as safe”, explica.

Para a cal (óxido de cálcio), o Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives (JECFA) nem estabelece ADI. “Esta substância já está presente em vários alimentos que consumimos, incluindo vegetais in natura. Obviamente em quantidades toleráveis ao nosso organismo”, diz Purgatto.

Excesso perigoso – Segundo Brunna, a utilização em excesso de açúcar, seja ele demerara, mascavo ou refinado branco, deve, de fato, ser motivo de atenção, pois pode ser prejudicial à saúde se o consumo se der com frequência e em altas quantidades.  
Tanto é assim que em 2018 o Ministério da Saúde anunciou a assinatura de um acordo para a redução de 144 mil toneladas de açúcar de alimentos industrializados no país até 2022. O acordo envolve 68 empresas e mais de mil produtos e segue o mesmo modelo daquele elaborado com o objetivo de reduzir o Sódio. Segundo o ministério, o país é um dos primeiros do mundo a fazer um acordo do tipo com a indústria de alimentos e bebidas.

De acordo com a Organização Pan Americana de Saúde, em uma dieta saudável, a recomendação é de que o consumo diário de açúcar não ultrapasse 10% das calorias ingeridas. Já a Organização Mundial da Saúde sugere uma ingestão abaixo de 5%.


Fontes adicionais:
Tecnologia da Fabricação do Açúcar. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, 2012. Disponível em: http://estudio01.proj.ufsm.br/cadernos/ifgo/tecnico_acucar_alcool/tecnologia_fabricacao_acucar.pdf

Cruz, Sandra Helena; Sarti, Danilo Augusto. A química do açúcar. Conselho Regional de Química IV Região, 2011. Disponível em: https://www.crq4.org.br/quimicaviva_acucar


compartilhar

Comentários