Leites de cabra e ovelha são digeridos mais facilmente que o leite de vaca

Pesquisadores apontam que, por ter glóbulos de gordura menores e maior quantidade de ácidos graxos de cadeia curta e média, a digestão desses leites é mais eficaz, evitando processos inflamatórios e desconfortos. Esses produtos também têm diversos atributos que os tornam menos alergênicos.

Fronteira do conhecimento

24/06/2022 -- Além de menos alergênicos, os leites de cabra e de ovelha têm outra vantagem em comparação ao leite de vaca: a digestibilidade. Devido à diferença na sua composição de proteínas e glóbulos de gordura, ele é digerido com maior velocidade, o que pode evitar processos inflamatórios que desencadeiam em lesões no intestino e na microbiota, e no ressecamento das fezes.

As informações foram detalhadas por pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em um artigo de revisão, que também dispõe sobre a relação entre os leites e a alergia.

Os pesquisadores destacam que os três leites têm uma concentração parecida de lactose. O percentual de gordura, por sua vez, é similar entre o leite de cabra e de vaca, mas quase o dobro no leite de ovelha. No entanto, ao contrário do que se pensava, isso faz pouca diferença quando o assunto é digestão. O fator que conta mesmo é o tamanho dos glóbulos de gordura e a posição dos ácidos graxos de cadeia curta e média nos triglicerídeos.

“Os glóbulos de gordura dos leites de cabra e de ovelha são quase 50% menores que os de vaca. Isso aumenta a área de interação entre os glóbulos e o intestino, deixando os triglicerídeos da gordura mais expostos e facilitando o processo de lipólise, pelo qual as enzimas promovem a quebra desses triglicerídeos para uma digestão mais eficiente”, explica o cientista de alimentos Bruno Leite Júnior, professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da UFV e coordenador do Laboratório de Inovação no Processamento de Alimentos - LIPA.

“Vale ressaltar que, no caso do leite de vaca, o processo de homogeneização aplicado industrialmente para produção de leite pasteurizado ou esterilizado promove a redução do tamanho dos glóbulos de gordura. Isso aumenta a digestibilidade do leite de vaca, devido à maior exposição dos triglicerídeos. Entretanto, mesmo em leites homogeneizados a digestibilidade do leite de ovelha é maior. Isso se deve à maior concentração de ácidos graxos de cadeia curta e média posicionados nos sítios sn-1 e sn-3 dos triglicerídeos, o que favorece a ação das lipases,” destaca Leite Júnior.

A composição desses glóbulos também facilita a digestão. “O leite de ovelha e, em especial, o leite de cabra têm cerca de 15% dos seus ácidos graxos formados por cadeias curtas, quase o triplo do leite de vaca. Isso faz toda diferença na forma como o intestino processa os alimentos. “Os ácidos graxos de cadeia curta são mais facilmente absorvidos no intestino, aumentando a velocidade do processo digestivo”, detalha a engenheira de alimentos Alline Tribst, pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp.

O leite de vaca, quando proveniente de raças de origem europeia, tem um problema adicional. “Essas raças passaram por uma mutação que resulta, durante o processo de digestão, na formação de um peptídeo [fração de proteínas] chamado BMC-7 (beta-casomorfina 7). O organismo tem dificuldade de quebrar esse peptídeo em unidades menores para finalizar a digestão, atrasando este processo e podendo levar à produção de muco e menor liberação de ácido gástrico e suco pancreático”, acrescenta Tribst.

Os pesquisadores ainda apontam que quanto melhor o processo de digestão, mais os ácidos graxos de cadeia curta conseguem ser absorvidos. “Trata-se de ácidos benéficos para o intestino como um todo, uma vez que têm uma ação anti-inflamatória importante”, afirma a nutricionista Isabela Soares Magalhães, aluna de doutorado no LIPA.

Potencial alergênico — Os leites de cabra e ovelha são conhecidos por serem possíveis substitutos do leite de vaca em casos de alergias, que ocorrem principalmente na infância. Alguns estudos indicam que as alergias ao leite de vaca acontecem porque o organismo de uma pequena parcela da população tem dificuldade para reconhecer algumas proteínas, não só do leite, como de trigo, aveia, soja, entre outras que possam estar incluídas.

Segundo o professor da UFV, o principal fator de alergenicidade do leite está nos tipos de caseínas, a proteína mais prevalente do leite. Cerca de 80% do total de proteínas dos leites de vaca e cabra são caseínas, mas elas são formadas por quatro frações proteicas diferentes: Alfa-S1, Alfa-S2, Beta e Kappa-caseína. “Nas proteínas do leite de vaca a quantidade de Alfa-S1 é de cerca de 40% do total das caseínas. Enquanto nos leites de cabra e ovelha esse número gira em torno de 5% a 7%. Essa fração proteica é descrita na literatura como a principal causadora da alergia devido a sua estrutura conformacional, que muitas vezes não é reconhecida pelo organismo, já que essa fração não é encontrada no leite humano”, afirma Leite Júnior.

Vale destacar que a alergia ao leite é um tema que não está relacionado à intolerância à lactose. “Muitas pessoas confundem isso. A intolerância ocorre em pessoas que não produzem lactase, enzima responsável pela quebra da lactose do leite. Não tem relação com as proteínas do leite”, explica o docente.

Embora sejam menos alergênicos e favoreçam a digestão, o sabor e cheiro dos leites de cabra e ovelha são muito fortes, o que nem sempre agrada ao consumidor. Além disso, o leite de ovelha em específico possui quase o dobro de proteínas e de gorduras que os outros dois. Desta forma, seu consumo deve ser feito com cuidado. “É um leite mais calórico, porém com um perfil de nutrientes e micronutrientes bastante interessante. Além disso, pelos parâmetros apontados, sua alta digestibilidade pode resultar em maior bem-estar durante sua digestão, comparado ao leite de vaca”, afirma Tribst.

Produção de derivados – O maior problema, no entanto, é que a produção do leite de cabra e de ovelha ainda é escassa no Brasil. Isso ocorre muito em função da capacidade produtiva, que é extremamente inferior à produção do leite de vaca. “Algumas raças de vaca, com um pequeno acompanhamento zootécnico, são capazes de produzir mais de 25 litros de leite por dia. Enquanto os pequenos ruminantes [cabra e ovelha] produzem em torno de um a quatro litros por dia.

É por isso que esse é um mercado que está mais ligado à artesanalidade, com um alto custo”, explica o professor da UFV. “Os leites de pequenos ruminantes são majoritariamente transformados em derivados lácteos que podem ser comercializados por um valor mais alto e vendidos muitas vezes na própria granja leiteira. Enquanto o leite de vaca é comercializado por grandes laticínios, com uma produção que pode chegar até um milhão de litros por dia”, complementa.

Os pesquisadores do LIPA buscaram formas de potencializar a exploração do leite de cabra. O esforço culminou na produção da dissertação de mestrado de Magalhães, que posteriormente publicou seus resultados na revista Food Research International. “Vimos que é possível aumentar a hidrólise da caseína do leite de cabra utilizando a tecnologia de ultrassom, o que possibilita a fabricação de produtos lácteos, como suplementos e bebidas, com maior facilidade e com um maior índice de propriedades benéficas à saúde. Realizando a hidrólise assistida no ultrassom foi possível aumentar em até 120% a taxa de hidrólise e na avaliação in vitro, foi possível acelerar em até 10x a produção de peptídeos com atividades antioxidantes”, detalha a doutoranda.

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