Há mais de um substituto para as substâncias tóxicas que contaminaram as cervejas artesanais da marca mineira

Você sabia?

06/03/2020 - O Brasil tem acompanhado de perto, e com tristeza, os anúncios de contaminação de sucessivos lotes de uma determinada marca de cerveja artesanal por duas substâncias que, até então, eram praticamente ilustres desconhecidas dos amantes dessa bebida ancestral: etileno glicol e dietileno glicol. E a primeira coisa que todo mundo se pergunta a respeito do ocorrido, que já causou quatro mortes e dezenas de internações por intoxicação grave, é a seguinte: por que essas substâncias, que são tóxicas, estavam sendo usadas em uma indústria de bebidas?

O professor Jorge Gut, pesquisador associado ao Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center) explica que, na indústria alimentícia, algumas indústrias usam água fria para resfriar alimentos líquidos pasteurizados. Ao circular dentro de serpentinas que passam ao redor do tanque, a água em baixa temperatura resfriaria a bebida por contato indireto, ou seja, sem que haja mistura com a bebida. “O problema é que a água congela a 0 °C e isso pode formar cristais de gelo que entopem todo o sistema de resfriamento. Para evitar isso, mistura-se à água substâncias anticongelantes, como o etileno glicol e o dietileno glicol”, explica Gut. “A adição do etileno glicol à água – e, menos frequentemente, do dietileno glicol – tem como função baixar a temperatura de congelamento da água, tornando possível que se trabalhe a temperaturas mais baixas sem preocupação com a possibilidade de congelamento”, acrescenta.

Normalmente, o etileno glicol, também chamado de monoetileno glicol, é o anticongelante mais comumente usado pela indústria alimentícia. “Trata-se de um solvente orgânico, um líquido viscoso e incolor, oriundo da indústria petroquímica. Ele é produzido a partir do etileno, mesmo material usado para fazer o plástico polietileno.”

Gut, que é professor do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, esclarece que, embora essas substâncias sejam de fato utilizadas como anticongelantes na indústria alimentícia, há determinados cuidados, ou protocolos, que evitam a possibilidade de contaminação no caso de fissura em alguma tubulação.

Tomemos, por exemplo, processos que têm uma etapa de resfriamento, como a pasteurização do leite, ou de um suco. Neste caso, aquece-se o alimento líquido e depois ele é resfriado rapidamente. “Normalmente, durante todo o processo, o leite ou o suco estão em tubulações pressurizadas, sob alta pressão, porque, se houver alguma pequena fissura naquelas tubulações, é o alimento que vai vazar para fora, e não a água com anticongelante que vai vazar para dentro. Isso é um protocolo para garantir a segurança do alimento. Agora, se a bebida estiver em um tanque resfriado, pode ser que ele não seja pressurizado, o que abriria brecha para a ocorrência de um acidente.”

O presidente da Associação Brasileira da Cerveja Artesanal (Abracerva), Carlo Lapolli, esclarece que os tanques de fabricação de cervejas artesanais também são pressurizados, mas as pressões são inferiores a 3 bar. “São menores, por exemplo, do que as pressões utilizadas nas linhas de refrigerantes, que trabalham com números entre 6 e 8 bar.” O bar é uma medida de pressão quase equivalente à pressão atmosférica. O importante é que a simples diferença de pressão entre o produto e a água de resfriamento já é suficiente para evitar contaminação.

Substitutos – O professor ressalta a existência de várias substâncias que podem ser misturadas com a água para baixar seu ponto de congelamento. “O dietileno glicol, que apareceu no caso da cerveja artesanal mineira, não é tão comum. Ele é mais usado na indústria química como um solvente, poucas vezes é usado como anticongelante. Já o propileno glicol, uma substância da mesma família, igualmente anticongelante, é muito pouco tóxico. Ele é encontrado em medicamentos e cosméticos. Mas é mais caro que o etileno glicol.”

Outra substância que baixa o ponto de congelamento da água é o etanol mas, segundo Gut, ele é pouco usado na grande indústria como anticongelante, porque é volátil e inflamável. “Ao contrário do etanol, o etileno glicol e as outras substâncias da família desse solvente são estáveis. Agora, tanto o etileno glicol e o dietileno glicol quanto o etanol são substâncias tóxicas que podem até matar, dependendo da quantidade ingerida.”

Entretanto, de acordo com o presidente da Abracerva (Associação Brasileira da Cerveja Artesanal), Carlo Lapolli, atualmente, mais de 80% das marcas artesanais existentes no mercado utilizam o álcool etílico (ou etanol) como anticongelante. “O restante varia entre água gelada, sistemas de refrigeração direta por expansão ou ainda propileno glicol.”

O cloreto de sódio – principal componente do nosso popular sal de cozinha – talvez fosse, a rigor, a opção anticongelante mais segura e econômica. Ele também baixa o ponto de congelamento da água, é barato e fácil de ser misturado a ela. “Só que, na indústria de alimentos, todos os equipamentos são de aço inox. E o aço inox não resiste à água com sal: ele sofre corrosão e acaba furando”, acrescenta o professor Gut.

Veja na tabela a seguir a temperatura de congelamento da água quando acrescida de 20% (em massa) das substâncias mencionadas acima:

Tabela cerveja - correção

Recentemente, a Abracerva solicitou ao Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastacimento (MAPA) e à Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a proibição cautelar do uso de etileno glicol e dietileno glicol na produção de cervejas artesanais. “Entendemos que substâncias atóxicas são as mais recomendadas”, diz Lapolli.

De acordo com a assessoria de comunicação da Anvisa, a Agência só regula produtos que entram em contato com o alimento, ou seja: ingredientes; aditivos que garantam certas características ao alimento; ou tecnologias que viabilizem sua produção. A assessoria, entretanto, confirmou que houve um pedido da Abracerva e que o MAPA e a Anvisa já vêm se reunindo para discutir a questão.

Preços – Os preços das substâncias acima mencionadas variam muito, dependendo da quantidade adquirida e da pureza mas, no geral, o etileno glicol é mais barato que o dietileno glicol e que o propileno glicol. “O dietileno glicol é cerca de 10% mais caro que o etileno glicol, e o propileno glicol é aproximadamente 15% mais caro.”

O etanol e o sal, puros, custam a metade do preço do etileno glicol, mas o etanol hidratado e o sal de cozinha são muito mais baratos. “Eles custam 1 décimo do valor do etileno glicol, mas, como se viu, ambos têm seus problemas no tocante ao uso como anticongelantes”, lembra Gut.

Dose letal e antídoto – A ingestão do etileno glicol e do dietileno glicol afeta o sistema nervoso central, e sua metabolização pelo fígado acaba afetando seriamente os rins. O pesquisador do FoRC ressalta que, embora essas substâncias sejam de fato tóxicas, é necessário o consumo de uma quantidade grande para levar uma pessoa a óbito. Isso depende ainda do peso da pessoa.
Para mensurar essa quantidade, utiliza-se uma medida chamada de ‘dose letal mediana’, ou seja: a dose que poderia matar 50% dos indivíduos de uma população, expressa em gramas por quilogramas de peso corporal. Normalmente, ela é medida usando-se experimentos em laboratório, com ratos, e neste caso representada pela abreviação LD50.

“A LD50 do dietileno glicol em ratos é 12,6 g /kg. Entretanto, uma dose letal para humanos é de cerca de 1 g/kg. A LD50 do etileno glicol em ratos é 4,7 g / kg; já a dose letal para os humanos é de cerca de 0,8 g/kg. Quanto ao propileno glicol, a LD50 para ratos é de 20 g/ kg. Para os humanos, a toxicidade do propileno glicol é 3 vezes menor do que a etanol. Entretanto, como eu já disse, a presença do etanol na cerveja pode ser tão tóxica quanto uma contaminação por glicóis. Tudo depende da dose. A LD50 do etanol em ratos é 7 g/kg. Neste caso, não é simples obter a dose letal para humanos, pois os dados são indiretos, obtidos a partir de casualidades.”

Ele lembra que o etanol também causa depressão do sistema nervoso central e é metabolizado pelo fígado. “Em certos casos, uma injeção de etanol nos indivíduos que ingeriram o mono ou o di etileno glicóis funciona como antídoto, pois o fígado vai metabolizar preferencialmente o etanol e não as duas substâncias, o que evitaria a formação de compostos que danificam os rins.”



compartilhar

Comentários