Você lembra como as avós cozinhavam feijão? Elas costumavam deixar os grãos de molho na água, prática comumente conhecida como “remolho”. Algumas, inclusive, costumavam usar a própria água do remolho para cozer o alimento. Com o passar dos anos, a adoção das panelas de pressão e a redução do tempo disponível para cozinhar, a prática não é mais tão comum assim. Mas, de acordo com especialistas do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center) e da Embrapa Arroz e Feijão, existe um consenso de que o remolho é benéfico.
“Quando se faz o remolho, além de acelerar a etapa de cozimento, pois os grãos são pré-hidratados, é possível eliminar ou dissolver alguns componentes do grão considerados antinutricionais, entre eles fitatos, polifenois (com destaque para os taninos) e oligossacarídeos não digeríveis”, explica a pesquisadora Priscila Bassinello, da Embrapa Arroz e Feijão.
Alguns desses componentes são os responsáveis pelo desconforto abdominal, a formação de gases e a flatulência após o consumo do grão, relatados por muitos consumidores. “Algumas pessoas relatam flatulência por causa do feijão e desconforto abdominal por conta da formação de gases. Há pessoas que têm mais sensibilidade ao feijão, outras menos. Isso varia de indivíduo para indivíduo, e também de acordo com a quantidade ingerida”, esclarece o professor João Roberto Oliveira do Nascimento, pesquisador do FoRC.
Segundo ele, os principais responsáveis por essa sensação de desconforto são a rafinose e a estaquiose, oligossacarídeos que não digeridos pelas nossas enzimas, mas sim fermentados no intestino grosso. “Como são moléculas relativamente pequenas, a penetração da água ajuda na solubilização e possibilita a redução dos níveis desses oligossacarídeos, assim contribuindo para diminuir a ocorrência ou a intensidade do desconforto abdominal.”
De acordo com o artigo “Técnicas recomendadas para pré-preparo de feijão: remolho e descarte de água”, publicado em 2011 na revista Nutrição em Pauta, alguns desses compostos são pouco resistentes à altas temperaturas e simplesmente desaparecem após o cozimento adequado. Já outros podem ter suas concentrações reduzidas por dissolução na água. A publicação revisou artigos que tratam da influência do remolho na qualidade nutricional de feijões comuns (Phaseolus vulgaris L.) cozidos com ou sem a água de remolho, publicados entre janeiro de 2004 e março de 2009.
Nos estudos que avaliaram fitatos, por exemplo, percebeu-se que a maior redução de ácido fítico ocorreu nas amostras que passaram por remolho e foram cozidas sem a água do remolho. De acordo com Priscila, da Embrapa, a redução de alguns componentes antinutricionais, incluindo os fitatos, pode ajudar a facilitar a assimilação de determinados nutrientes do grão, sobretudo minerais e proteínas.
“A proteína, ou o mineral, estão presos a esses compostos fenólicos e a esses fitatos. Assim, não ficam acessíveis para o organismo. Grosso modo, é como se esses antinutrientes sequestrassem os minerais e as proteínas, tornando-os não disponíveis para o nosso processo digestivo.”
Entretanto, alguns autores relatam que o remolho pode, também, provocar a perda de minerais, que seriam solubilizados na água (caso ela seja descartada após o remolho). Outros afirmam que, mesmo assim, a quantidade de minerais restante no feijão teria maior biodisponibilidade em comparação ao feijão sem remolho (ou cozido com a água de remolho). Efeito que, provavelmente, deve-se à minimização dos antinutrientes que se ligam aos minerais, e que também são descartados com a água de remolho.
“A cocção também compensa a perda de minerais. Fizemos estudos e descobrimos que alguns minerais migram para o caldo: ferro, cálcio, magnésio, zinco, potássio...”, esclarece Priscila.
O artigo conclui que a maioria dos autores recomendou o remolho e, diante dos resultados, a eliminação da água de remolho mostrou-se mais vantajosa nutricionalmente do que o cozimento do alimento na própria água de remolho, principalmente pela maior eliminação de taninos e de oligossacarídeos causadores de flatulência, bem como maior biodisponibilidade de minerais.
Tempo de remolho – Embora a prática do remolho seja consenso entre cientistas, permanece a dúvida sobre o tempo que o grão deve ficar na água antes da cocção. A maior parte dos estudos indica um tempo entre 8 e 12 horas, ou seja, exatamente aquilo que nossas avós faziam: colocar o feijão de molho na noite anterior para cozer no dia seguinte. Acontece que o feijão comprado hoje nos supermercados é diferente daquele que era utilizado há 30, 40, 50 anos.
“O produto comercializado hoje leva muito menos tempo para cozer do que aquele que as nossas mães e avós faziam. Naquele tempo, eram necessários cerca de 50 minutos em panela de pressão para cozinhar o feijão (que, muitas vezes, já vinha do remolho). Hoje, em 20, 25 minutos, sem remolho, ele está cozido”, diz Priscila.
Para Nascimento, do FoRC, havia ainda outros motivos para o remolho, além de facilitar e diminuir o tempo de cocção. “Antigamente, os grãos continham mais impurezas. Então, colocar o feijão de molho também era uma forma de separar o que boiava: grãos carunchados, talos, folhas, insetos. Hoje em dia, praticamente não se escolhe mais feijão: ele já vem muito mais limpo.”
Priscila afirma que o cozimento mais rápido é uma exigência do mercado. “Estamos trabalhando para melhorar geneticamente o feijão no intuito de facilitar o cozimento, ou seja: buscando cultivares que cozinhem mais rápido. Por isso, creio que seria interessante sugerir um estudo mais atualizado abrangendo vários tipos de feijões e verificando qual tempo de remolho que atenda a essa demanda por um grão que cozinhe rápido, mas fique íntegro, que mantenha a maior parte das propriedades nutricionais e que ajude a eliminar os fatores antinutricionais e de flatulência.”
Ela salienta que diferentes tipos de feijão talvez requeiram diferentes tempos de remolho e afirma que a massa do grão geralmente dobra com o remolho. “O preto e o carioca, por exemplo, são muito parecidos no comportamento. Mas a capacidade de hidratação pode variar conforme varia o tamanho do grão, a espessura da casca, a interação com o ambiente de cultivo, o armazenamento.... Já estudei grãos que atingiram o máximo de hidratação em quatro horas.”
A pesquisadora lembra, ainda, que o feijão novo, recém colhido, cozinha mais rápido, mas que isso pode também depender da variação entre cultivares, do clima a que ele esteve sujeito durante o cultivo e depois de embalado, da embalagem, do tempo e do local de armazenamento, da umidade, da temperatura a que ele está exposto, entre outros fatores.
Cozimento – Nascimento alerta que o consumo de feijão pouco cozido (ou cru, em forma de farinha) não é recomendável em hipótese alguma. “Há, no feijão, inibidores de proteases endógenas (tripsina e quimotripsina, presentes no suco digestivo e produzidas pelo pâncreas). Em tese, o efeito negativo desses inibidores é o dano nutricional, porque eles prejudicam o aproveitamento das proteínas ingeridas na dieta. A exposição frequente e por um prazo razoável pode eventualmente causar uma disfunção no pâncreas, estimulando seu aumento. E isso, a longo prazo, pode até estar associado a formação de tumores. Mas ocorreria apenas no caso de uma pessoa consumir, regularmente, o feijão cru ou pouco cozido.”
O pesquisador adverte que a prática de ingerir farinha de feijão branco cru como emagrecedor não é nada saudável. “Além de inibidores de proteases, o feijão também contém lectinas, que têm efeito nocivo porque causam alteração na superfície do intestino e podem prejudicar seu funcionamento.”
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