Critérios de prazo de validade dos alimentos podem ser alterados sem risco ao consumidor

É o que mostram experiências bem-sucedidas em outros países que conseguiram diminuir o desperdício de alimentos adotando um novo modelo. Mudança é defendida pela indústria alimentícia.

Políticas públicas e legislação

02/10/2023 - Em todo o mundo, o prazo de validade dos alimentos é definido com base em três parâmetros: segurança ou inocuidade, composição e performance sensorial. O primeiro, e mais importante, está ligado ao risco de o alimento causar algum dano ao consumidor como, por exemplo, a multiplicação de micro-organismos que possam contaminar o alimento em sua produção. O segundo parâmetro indica a data a partir da qual os ingredientes essenciais ou em destaque no rótulo começam a sofrer alterações. Por fim, o parâmetro sensorial indica quando ocorrem mudanças de aparência, textura, odor e sabor.

No Brasil, a validade dos produtos alimentícios é determinada pela combinação desses três aspectos, considerando aquele que for mais restritivo. Ou seja, um alimento cuja validade expirou pode até estar seguro para consumo, apesar de ter alterações em seus componentes ou na aparência. Passada a validade, seu destino será obrigatoriamente o lixo. É o que determina a Lei 8.137/90 em seu artigo 7, que prevê pena de dois a cinco anos, ou multa, para produtores ou varejistas que distribuam ou comercializem produtos vencidos. Salvo exceções, a lei se aplica à maioria dos produtos alimentícios.

Dados da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS) apontam que 43% das perdas nos supermercados – o equivalente a R$ 3 bilhões de produtos descartados no lixo por ano – se devem a prazos de validade expirados. Não há informações que indiquem qual percentual desse total seria de produtos ainda seguros para o consumo.

Modelo alternativo – Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), há alternativas para mudar esse quadro e que precisam ser discutidas. Uma delas é seguir o exemplo de alguns países, como Holanda, Alemanha, Reino Unido, Canadá e Portugal, que adotaram um novo modelo de prazo de validade. O modelo em questão é conhecido como Best Before (melhor antes, em tradução livre do inglês) e consiste, na maioria dos casos, na utilização de duas datas.

A primeira, conhecida como Best Before indica até quando o alimento está em sua melhor performance considerando os três parâmetros (segurança, composição e performance sensorial), e a segunda data, definida como Use By (válido até) considera apenas o critério de segurança ou inocuidade. Ou seja, entre os prazos Best Before e Use By, o alimento estará seguro para o consumo, mas pode não ser mais tão gostoso ou nutritivo.

“Na Holanda e Alemanha, houve uma redução nos índices de desperdício e de lixo e uma melhoria nos fluxos de produtos dentro dos supermercados. Nesses países, os produtos Use By ganham uma seção separada no supermercado, ou até mesmo uma loja específica, e geralmente são mais baratos”, conta Alexandre Novachi, diretor de assuntos regulatórios e científicos da ABIA.

Uma segunda alternativa, segundo ele, seria ampliar as exceções na obrigatoriedade do prazo de validade para as classes de alimentos em que não há riscos de contaminações que possam causar danos ao consumidor. “Para isso, no entanto, são necessários mais estudos a fim de garantir que não haja qualquer risco à saúde”, destaca Novachi. Isso já foi feito pelo Ministério da Saúde em 2002, com a Resolução da Diretoria Colegiada nº 259, que extingue o prazo de validade para bebidas alcoólicas (com teor de álcool acima de 10%), para vinagre, produtos de panificação e confeitaria, balas, gomas de mascar e doces similares. E se repetiu mais recentemente, com a Portaria nº 458/2022 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que retirou o prazo para vegetais frescos embalados.

Mas o problema não se limita aos estabelecimentos comerciais. O relatório Food Waste Index da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) mostra que cerca de 60 % do desperdício global de alimentos, que é de 931 milhões de toneladas de alimentos, ocorre no ambiente doméstico. “É uma questão cultural muito forte, principalmente no Brasil. Grande parte dos desperdícios das famílias se deve à cultura de jogar fora alimentos que estão prestes a vencer, mas que ainda estão seguros para o consumo”, afirma. Esse problema, em sua avaliação, requer medidas educativas.

Parâmetros confiáveis – Segundo Edison Triboli, professor do curso de Engenharia de Alimentos do Instituto Mauá de Tecnologia, o prazo de validade parte da premissa de que todos os produtos de origem animal e vegetal, em maior ou menor grau, sofrem alterações químicas e/ou bioquímicas com o passar do tempo, principalmente se houver aumento da temperatura ambiente durante o armazenamento, o que acelera os processos, e pela ação de micro-organismos que fazem parte do alimento [não prejudiciais à saúde], que podem deteriorar sua composição, aspectos sensoriais e até, em casos extremos, sua segurança.

No Brasil, o prazo de validade é estabelecido pelos fabricantes com base em análises. “Essas análises são feitas de acordo com Codex Alimentarius, conjunto internacional de diretrizes adotado pela FAO e pela OMS [Organização Mundial da Saúde] que indica o limite permitido de micro-organismos nos alimentos e o que pode ou não pode conter em sua composição para torná-lo seguro”, explica Triboli. Cabe à Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] checar, com base nos relatórios enviados a ela, apenas se o produto oferece algum risco à saúde — sem definir um prazo de validade.

Segundo Novachi, todas as análises feitas pela indústria são feitas de forma extremamente rigorosa, sobretudo no aspecto de segurança. “Quando ocorrem problemas, o que é raro, é porque houve algum tipo de erro, não proposital”, afirma.

Ele explica que os três parâmetros têm pesos diferentes. “Na indústria, o parâmetro de segurança em relação aos micro-organismos é inegociável, não sendo permitido prazos que ofereçam riscos ao consumidor. O parâmetro de composição, por sua vez, pode ser flexibilizado caso o ingrediente que sofreu alterações não esteja anunciado em destaque no rótulo [exemplo: um suco de laranja com alegação de ser rico em vitamina C, sendo que essa vitamina se deteriora com o tempo]. A exceção, nesse caso, é quando há uma legislação que obrigue a inserção de determinados componentes, como as farinhas fortificadas com ferro e ácido fólico”, explica.

Já o parâmetro sensorial, segundo Novachi, tende a ser flexibilizado, pois o prazo de validade nesse caso apenas sugere a data em que o consumo do alimento é mais prazeroso. A flexibilização desse parâmetro, no entanto, tem limite. “A concorrência no mercado é muito grande e, por se tratar de bens de pouquíssima duração, e em determinados casos muito baratos, a fidelização do cliente é importante”, destaca Triboli. “Se um biscoito ou achocolatado do concorrente estiver mais bonito ou gostoso, ele não hesitará em trocar de marca. Assim, podemos garantir que a indústria não adotará prazos que não garantam qualidade sensorial, porque ninguém quer perder dinheiro”, aponta.

Nesse aspecto, para serem estabelecidos os prazos de validade, os profissionais da área identificam as principais mudanças que acontecem em função do tempo e passam a fazer testes para avaliá-las. “O que determina o prazo de validade de uma geleia, por exemplo, é ficar escura ou se liquefazer; então é feito um monitoramento para avaliar quando ocorrem essas situações. Além disso, são feitos testes com grupos de consumidores, especialistas ou não em alimentos, antes e depois da modificação, para saber se isso altera suas percepções em relação ao produto”, conta Triboli. “Isso diminui a chance de o consumidor se frustrar em sua expectativa em relação ao produto, evitando que ele troque de marca e passe a consumir o produto concorrente”, finaliza.


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