15/05/2022 -- Açúcar e leite são os únicos ingredientes necessários para produzir um dos doces mais amados pelos brasileiros, o doce de leite. Esse produto tradicional, que é consumido há séculos na América Latina, desde o período colonial, tem uma físico-química ainda pouco explorada cientificamente, mas seu processo de produção é bastante simples: basta aquecer a mistura de seus dois componentes, de forma que a água evapore – e seja desenvolvida uma reação química conhecida como Maillard. No entanto, se o processo e a receita são simples, e muitas vezes feita de forma caseira, o que os doces de excelência fazem de diferente? Qual o segredo?
São essas as perguntas que buscamos responder neste texto. Para ajudar a respondê-las, fomos atrás de especialistas no assunto. Para Antônio Fernandes, professor do Departamento de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, a qualidade da matéria-prima é o diferencial. “O único ingrediente que utilizamos na Universidade, além do açúcar e do leite, é o bicarbonato de sódio, para catalisar a reação de Maillard. Mas a principal diferença é o leite, produzido em nosso campus e processado imediatamente”.
Segundo Antônio, o leite utilizado é de excelência pois é homogeneizado e conta com um baixo teor de acidez. “Nosso leite conta com uma acidez baixa, de apenas 0,15% de ácido lático. Além disso, passa por um processo de homogeneização em dois estágios, o que garante textura e viscosidade únicas”.
Produzido por estudantes e pesquisadores da UFV desde 1980, em parceria com a Fundação Arthur Bernardes (Funarbe), o doce de leite de Viçosa foi reconhecido dez vezes como o melhor doce de leite do país pelo Concurso Nacional de Produtos Lácteos – CNPL. E além da qualidade do leite, há outros detalhes importantes no processo de fabricação. “Nosso doce é feito de uma forma mais lenta e com uma quantidade pequena de leite dentro do tacho que é mantida em evaporação durante todo o processo de Maillard. Isso demora muito, mas deixa o produto consistente e mais úmido, evitando a adição de grandes quantidades de açúcar, o que o deixaria enjoativo”, destaca Fernandes.
O doce de leite da UFV é produzido em larga escala, mas sua produção é feita seguindo tradições caseiras. Segundo o pesquisador, o processo é adaptável ao pequeno produtor, basta ter calma e buscar o leite de qualidade — assim como nossas avós faziam. “Nosso doce demora quatro horas e meia para ficar pronto”, complementa.
Sete passos - O doce de leite é um produto tradicional sobretudo em Minas Gerais, onde se situam os três melhores colocados do último CNPL, realizado em 2019. E é deste estado que vem o professor Rodrigo Stephani, do Departamento de Química da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em conjunto com o professor Ítalo Tuler Perrone, da Faculdade de Farmácia também da UFJF, foram elaborados sete passos para um doce de leite de sucesso. São eles:
- Padronização da matéria-prima: as matérias-primas (leite e açúcar) devem sempre ter as mesmas características e qualidades, com mínimas variações entre lotes. No caso do leite, principalmente em relação à gordura e acidez. Portanto, é preciso evitar trocas constantes de fornecedores;
- Homogeneização: processo feito por máquinas específicas que diminuem o tamanho dos glóbulos de gordura do leite visando sua padronização, algo importante para garantir uma boa textura e viscosidade ao doce. Muito utilizado em fabricações de leite pasteurizado, mas difícil de ser adaptado ao pequeno produtor;
- Adequação da formulação: se houver alteração no padrão do leite e do açúcar, é importante ter formulações adaptadas de acordo com as matérias-primas. Ou seja, se for preciso modificar a quantidade de leite por conta de seu percentual de gordura, por exemplo, é necessário mudar a quantidade de açúcar proporcionalmente;
- Controle da evaporação: na hora de retirar a água, é importante ter o tempo padronizado, senão o resultado final da reação de Maillard pode variar;
- Conhecimento do equipamento: é necessário conhecer bem o tacho para fazer o processo sempre da mesma forma. Dependendo do equipamento, podem ocorrer diferenças de cor, sabor e textura. Por exemplo, quanto maior a cuba do tacho, maior a velocidade da evaporação, o que modifica a cor do produto;
- Saber a hora de parar: é necessário conhecer o momento certo de parar o processo de evaporação e com isto diminuir a velocidade da reação de Maillard. Isso é crucial para a fabricação e depende da sensibilidade de quem fabrica;
- Embalar com cuidado: independente do doce ser envasado em lata, plástico ou pote de vidro, é preciso ter cuidado com a higiene durante a embalagem e depois manter a embalagem bem lacrada e armazenada em temperatura controlada. Assim se evita o surgimento do mofo causado por micro-organismos.
Para Stephani todos os passos são fundamentais por um único motivo: a padronização da produção. “O produto tem sempre que manter um mesmo padrão, pois é o padrão que o consumidor gosta. Cada doce vai ter uma fórmula diferente, o seu padrão, mas a partir do momento em que você encontra o seu, a saída é fazer isso igual todos os dias. Se o resultado do doce estiver diferente do habitual, você precisa avaliar o que mudou no processo de produção”.
Receita caseira – Mas se você é apenas um consumidor e adoraria ter uma receita infalível, aqui vai uma recomendação especial do professor Rodrigo Stephani:
Ingredientes:
15 litros de leite integral ou padronizado
2,7 quilos de açúcar cristal
15 gramas de bicarbonato de sódio
Modo de fazer:
Misture o bicarbonato de sódio com o leite e armazene. Em uma panela seca de aço inoxidável, adicione o açúcar, leve-o em fogo alto, mexendo constantemente até que o açúcar comece a derreter e caramelizar (cuidado para não deixar a calda escurecer muito, pois pode prejudicar o sabor do doce de leite).
Com a calda ainda quente e com todo açúcar já em estado líquido, adicione lentamente a mistura do leite com o bicarbonato na panela. A partir daí, comece a mexer e não pare mais. Mantenha o fogo alto o suficiente para manter a evaporação constante, sem projetar o leite para fora da panela (cuidado para não se queimar). Na fase inicial, o controle do fogo é mais complicado, no entanto, com o aumento da concentração do leite na panela, o processo vai ficando mais fácil.
Continue mexendo e mantenha o processo da evaporação até dar “o ponto”. Um teste simples é gotejar o doce diretamente da panela em um copo com água. As gotas precisam chegar no fundo do copo sem sujar a água ou perder a forma.
Sem parar de mexer, desligue o fogo. Só pare quando o doce estiver em uma temperatura entre 70 a 75°C (utilize um termômetro cozinha para medir). Na sequência, envase o produto. Tampe os frascos e vire-os de cabeça para baixo. Mantenha o doce de leite fora da refrigeração, protegido do sol, de umidade e de luz excessiva. Se forem utilizadas boas práticas de fabricação durante a produção, o produto terá uma validade média de 60 a 90 dias, a variar pelo tipo de embalagem.
Saiba mais:
Por mais que a fórmula e os ingredientes sejam simples, o doce de leite passa por diversas modificações de região por região. O doce produzido no Nordeste é bastante diferente do que é feito no Sudeste e no Sul. Assim como os produzidos em outros países latinos, como Argentina, Uruguai, Colômbia (conhecido como arequipe) e México (conhecido como cajeta).
“Na região sul, assim como na Argentina e no Uruguai, o produto é mais escuro, com um sabor mais acentuado de caramelo, às vezes até com aromas, como o de baunilha. No Sudeste, o produto não é tão escuro e não há o costume de acrescentar aroma. Já no Nordeste ele é mais claro, com menos açúcar e mais leite”, conta Rodrigo Stephani, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Na região Sul, na Argentina e no Uruguai, é até utilizado corante de caramelo para deixá-lo mais escuro. No Nordeste, o doce é muito claro por conta de uma reação de Maillard pouco extensa, o que preserva o valor nutritivo das proteínas pois as mantém intactas”, complementa Antônio Fernandes, da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
O doce de leite também possibilita inúmeras personalizações, algo positivo para o produtor artesanal. “Os grandes produtores se encontram muitas vezes engessados no próprio produto. Enquanto o produtor artesanal tem uma flexibilidade maior para ousar, encontrar sabores e texturas diferentes. Ele pode misturar com café, amendoim, cachaça, jujuba… as possibilidades são infinitas. Isso pode ser muito bom para que ele se diferencie e encontre seu nicho de mercado”, destaca Stephani.
Para Fernandes, todas as variedades são válidas, desde que o produto esteja de acordo com a regulamentação. “Tudo que se encaixa no Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade do MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], estabelecido em 1997, é digno”.
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