Biodiversidade brasileira gera livro de receitas colaborativo

Obra disponível no site do MMA é fruto do trabalho de dezenas de pesquisadores; você pode enviar sua receita se ela envolver um dos 64 ingredientes selecionados.

Nutrição na medida

07/08/2020 - Você já comeu catchup de mangaba? E brownie de jatobá? Antes que você diga que é “invenção”, adiantamos que é mesmo, pois essas e outras iguarias foram criadas especialmente para um livro de receitas focado na biodiversidade brasileira. Organizado por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores distribuídos pelas cinco regiões do país, o livro traz 369 receitas utilizando 64 plantas nativas: araçá, cagaita, jatobá, açaí, ora-pro-nóbis, gueroba, coquinho-azedo, castanha de baru, entre outras. A obra é colaborativa: se você tiver uma receita que leve algum dos ingredientes selecionados pelo livro, você pode enviá-la para compor o rol de delícias do receituário, que se chama Biodiversidade Brasileira: sabores e aromas, e fica hospedado no site do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

“O livro surgiu como desdobramento de um grande projeto de âmbito internacional: o Biodiversity for Food Nutrition, ou BFN, que no Brasil ganhou o nome de Biodiversidade para Alimentação e Nutrição. A ideia surgiu em uma das Conferências do Clima da ONU, as chamadas COPs, e o objetivo era que o projeto fosse realizado nos países com maior biodiversidade. Assim, Brasil, Quênia, Sri Lanka e Turquia foram convidados para desenvolver projetos que tratassem de biodiversidade para alimentação e nutrição”, explica a professora Raquel de Andrade Cardoso Santiago, da Universidade Federal de Goiás, coordenadora do Projeto BFN Centro-Oeste.

Segundo ela, o objetivo era desenvolver projetos para investigar e promover a biodiversidade de cada país. No Brasil, em um primeiro momento, pensou-se em um projeto piloto no Nordeste, liderado por pesquisadores da USP. “No final, chegou-se ao consenso de que deveriam ser convidadas outras instituições do Brasil porque o país tem uma biodiversidade muito grande, além de ser extenso. Então, foram convidados os Cecanes – Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar –, e eu, que estava muito ligada ao Cecane da Universidade Federal de Goiás (UFG), fui para a reunião no MMA.”

A proposta do MMA foi selecionar plantas de valor econômico atual ou potencial, com ênfase para frutíferas e hortaliças identificadas pela iniciativa “Plantas para o Futuro”, de forma a criar um banco de dados de composição centesimal com esses alimentos. Com isso, seria possível contemplar as três principais propostas do projeto: gerar informação/evidência, capacitar e conscientizar pessoas, e influenciar políticas públicas e o mercado na área de alimentação e nutrição.

“Foram escolhidas 64 plantas das cinco regiões brasileiras, e cada região e instituição envolvidas começaram então a criar seus próprios projetos, sempre voltados para atender a essa meta, de desenvolver o banco de dados, seguindo o protocolo internacional da FAO [Food and Agriculture Organization].” O trabalho envolveu mais de uma centena de pesquisadores em todo o país.

Ela explica que, para validar os laboratórios e métodos dos centros de pesquisa participantes, cada um precisou fazer análise de um material de referência SRM 2383a – Baby Food Composite do National Institute of Standards and Technology (NIST) dos Estados Unidos. “Concomitantemente, fizemos uma compilação de dados, fomos atrás do que já havia sido publicado sobre essas plantas, e checamos se os dados que constavam nesses estudos poderiam ser utilizados, se a metodologia estava dentro das técnicas e das normas padrão que estávamos usando. Por fim, cuidamos da capacitação da equipe para trabalhar com esses frutos e plantas.”

O banco de dados fica hospedado no site do Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr) e é colaborativo. Para elaborá-lo, as equipes realizaram a coleta de amostras das plantas e frutos em três lugares diferentes. Das três amostras, somente uma podia ser adquirida no mercado comercial. As demais precisariam vir do campo. “A maioria das amostras foi colhida no campo. E essa foi nossa primeira dificuldade, porque não são frutos cultivados, são nativos, sazonais, e geralmente provenientes de extrativismo.”

Livro de receitas – Raquel conta que a equipe do Centro-Oeste, coordenada por ela, propôs que fosse feito um livro de receitas para complementar o banco de dados. “Pensamos que, mais do que saber a composição dos frutos e plantas, seria interessante apontar o uso dessa riqueza toda, para que as pessoas se interessassem de fato por esses ingredientes. E eu tive o prazer de coordenar a elaboração desse livro, com receitas do Brasil todo.”

Os pesquisadores construíram um protocolo com as normas de peso, medidas, tamanho de utensílios, e seguiram regras estabelecidas previamente. “Uma das regras era: queríamos coisas inovadoras. Alimentos do tipo geleia, doce, bolo, isso já existe muito. Queríamos receitas novas.”

Raquel relembra que as instituições envolvidas, em cada estado, também tinham perfis diferentes. “Em determinados estados, como o Ceará, por exemplo, trabalhamos com as universidades federal e estadual, sendo que somente uma delas tem o curso de gastronomia. Então, as receitas deles foram todas desenvolvidas por chefs locais. Em São Paulo, foram os alunos e pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie que desenvolveram as receitas, dentro do curso de nutrição e gastronomia, respectivamente. Na região Norte, a Universidade Federal do Pará participou do trabalho de cálculo do valor nutricional das receitas, mas estas foram desenvolvidas no Instituto Paulo Martins, ligado ao ensino da gastronomia local. No Centro-Oeste, elas foram desenvolvidas por nós, da Universidade Federal de Goiás, além de professoras e alunos do Instituto Federal Goiano. Na região Sul, trabalhamos com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.”

No início do processo, as equipes estiveram em São Paulo para um treinamento. A ideia era padronizar a obra – das medidas utilizadas nas receitas até as imagens do livro. “Fizemos um treinamento para padronizar as medidas. Quando a receita diz “uma colher”, não é a colher que as pessoas têm em casa, porque a da minha casa pode ser diferente da que você tem na sua. É aquela medida que se compra em loja de produtos para a cozinha. Mas, como o Inmetro não valida essas medidas no Brasil, fizemos uma tabela de validação. As regiões mediram os utensílios delas, e então fiz uma média de valor. Por exemplo: uma xícara de chá farinha de trigo tem, em média, 120 g. Tentamos fechar os padrões da melhor forma para que ninguém tivesse problema para replicar as receitas em casa. Todas as imagens também foram padronizadas, e cada grupo tinha o seu fotógrafo. O instrutor deles foi o Itamar Sandoval, nosso fotógrafo aqui do Centro-Oeste.”

Culinária afetiva– Para desenvolver as receitas da região central do Brasil, a equipe liderada por Raquel procurou merendeiras, comunidades quilombolas e indígenas, e outros grupos detentores de saberes tradicionais. “Fomos atrás de receitas da ‘culinária afetiva’, da cultura de cada grupo. Com alguns deu mais certo, com outros menos. Falamos com chefs de cidades turísticas do interior. Buscamos também mostrar o uso que se faz do mesmo ingrediente em estados diferentes, como é o caso da gabiroba: trouxemos receitas do Mato Grosso, onde ela é usada de um jeito diferente daquele que se usa aqui em Goiás.”

O grupo do Centro-Oeste ainda desenvolveu, na esteira do projeto, uma cartilha para agricultores familiares, com 22 plantas, contendo uma espécie de manual de manejo e coleta, com identificação por foto; e um livro sobre o uso da biodiversidade pelos quilombolas, que foi doado às comunidades envolvidas para que pudessem comercializar e gerar renda.

“Creio que o grande desafio é fazer as pessoas acreditarem que a planta e a fruta valem a pena. Isso ainda é um processo. Os sabores brasileiros, de um modo geral, são muito fortes. Os nossos sabores, aqui do cerrado, também são muito intensos. Então, o pulo do gato era conseguir incluir esses sabores em receitas que as pessoas gostassem. Receitas que convencessem não só pela imagem, mas pelo sabor. Fazer as pessoas acreditarem nos nossos sabores ainda é um desafio. Mas é preciso criar estratégias para que elas parem de destruir a biodiversidade. E uma delas é essa: que elas saibam o valor dessa biodiversidade para a alimentação, e que saibam como usá-la. É a conservação da biodiversidade pelo uso.”

O livro tem sete capítulos e está dividido por regiões do país. Ao final, traz receitas de base (como maionese de pimenta de cheiro) e fundos (caldos claros e escuros, à base de carnes ou legumes), e a composição centesimal (por 100g) da parte comestível das espécies nativas. Também traz os nomes científicos e os nomes populares das espécies e um glossário de termos usados regionalmente.

Entre as receitas estão combinações inusitadas, como um drink chamado hot pequi (à base de cerveja e licor de pequi, pimenta e suco de limão); ceviche de caranguejo com leite de tigre de cajá; crostata de araçá; sopa fria de jabuticaba com castanha-do-Pará, e muitas outras.

“Quem tiver receitas envolvendo um dos 64 ingredientes pode mandar para ser incluída no livro. Eu vou receber, colocar no protocolo e vai entrar no receituário. Tanto o livro quanto o banco de dados centesimais são públicos e colaborativos, qualquer pessoa pode colaborar, contanto que siga alguns critérios.” As receitas podem ser enviadas para o e-mail racsantiago@gmail.com

O livro teve ainda o apoio do Global Environment Facility (GEF), do Funbio e da Biodiversity International.




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