26/08/2020 - Cientistas do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center) e de duas instituições francesas investigam a possibilidade de usar bactérias láticas para reduzir ou prevenir processos alérgicos relacionados ao consumo de alimentos à base de trigo. Uma das abordagens explora bactérias com atividade proteolítica, ou seja, que são capazes de quebrar as sequências responsáveis pela alergia ao glúten – um complexo proteico composto por gliadinas e gluteninas. As bactérias seriam usadas para fermentar o glúten, aproveitando as propriedades que esses microrganismos têm de reduzir as proteínas em pedaços menores (peptídeos e aminoácidos livres) e, assim, diminuir seu potencial alergênico. Uma vez dominado, este processo poderia ser empregado para a fabricação de alimentos. Ou ainda resultar em um glúten fermentado para uso como ingrediente em produtos de panificação.
Outra abordagem da pesquisa busca bactérias que tenham também propriedades probióticas, com vistas a uma terapia adjuvante que atenuasse os processos de alergia alimentar, sobretudo relativos ao o glúten. “Há pessoas que não são alérgicas, mas que têm risco de se tornarem alérgicas a determinados alimentos, geralmente por fatores genéticos: ou porque nasceram em famílias de pais asmáticos ou alérgicos a alimentos, por exemplo. Na clínica médica, consideramos que essas pessoas têm um background para o desenvolvimento de alergias. E, nessas pessoas, entendemos que é possível prevenir a ocorrência dessa hipersensibilidade”, explica Kamel Eddine El-Merchefi, bioquímico e fisiologista argelino que vem trabalhando com o tema no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), da França.
O INRA é parceiro do FoRC em um projeto do Research Food Innovation: Food for Tomorrow, cujo objetivo é explorar a fermentação como ferramenta para reduzir a alergenicidade em proteínas vegetais. A parceria tem a coordenação das professoras Colette Larre (INRA) e Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco (FoRC). A Oniris – Ecole Nationale Vétérinaire, Agroalimentaire et de l'Alimentation de Nantes – também integra o consórcio. Para este projeto, o grupo trabalha com coleções de bactérias láticas das três instituições parceiras.
Atividade proteolítica – A bióloga Marcela Albuquerque, pós-doutoranda na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e que está no INRA desenvolvendo parte de sua pesquisa, resume a ação das bactérias láticas no processo. “Para se desenvolverem, as bactérias precisam, entre outros nutrientes, de aminoácidos, pois são fatores de crescimento para elas. O acesso aos aminoácidos se dá por meio da quebra de proteínas, a exemplo do glúten. Para tanto, as bactérias produzem enzimas que hidrolisam as proteínas, ou seja, quebram as proteínas em diversas partes menores, conhecidas como peptídeos. É o que chamamos de atividade proteolítica, e essa é uma característica importante que nos interessa nessas bactérias. Focamos nas bactérias láticas porque elas são reconhecidas como seguras para consumo humano e amplamente exploradas para o desenvolvimento de alimentos.”
A pesquisadora explica que o glúten é um complexo proteico formado por duas subunidades: gliadinas e gluteninas, cada uma delas composta por diferentes subtipos. Os pesquisadores procuram encontrar cepas de bactérias láticas capazes, principalmente, de hidrolisar as gliadinas, que são as principais responsáveis tanto pelas reações de hipersensibilidade ao glúten quanto pelas reações desencadeadas nos celíacos.
Seleção de bactérias – O bioquímico Kamel El-Merchefi explica que para selecionar os microrganismos com atividade proteolítica as cepas são cultivadas em um meio tradicional e depois inoculadas em meio suplementado com glúten. “Nesta última etapa, não há nitrogênio: a ideia é que a única fonte de nitrogênio seja o próprio glúten, e o nitrogênio presente no glúten é importante para o metabolismo desses microrganismos”, explica.
Depois de 24 horas em condições anaeróbicas, são feitos testes para verificar se o glúten está ou não hidrolisado, ou seja, se foi reduzido em partículas proteicas menores. “Selecionamos dez microrganismos capazes de hidrolisar a gliadina. Nós os identificamos e caracterizamos, e o Lactococcus lactis foi o melhor candidato de todos; então, continuamos a estudar especificamente as cepas dessa bactéria e seu potencial de afetar as sequências responsáveis pela alergia ao trigo, sobretudo nas gliadinas”, resume ele, ressaltando que a fermentação é um processo estável, natural e barato.
Os pesquisadores ainda testaram o glúten fermentado nos basófilos – células do nosso sistema imunológico responsáveis pelos sintomas nas reações alérgicas – em um estudo in vitro. “Nós incubamos o glúten fermentado com essas células e observamos que sua alergenicidade decresceu em 40%, se comparada à do glúten não fermentado. Embora tenhamos 60% dos alérgenos conservados no produto, ainda assim o resultado é muito bom. O objetivo agora é testar se ele consegue prevenir reações alérgicas em modelos animais”, adianta o bioquímico.
Desdobramentos – Para o pesquisador, os resultados dos 18 meses de pesquisa foram muito positivos. “Além de selecionarmos as cepas com atividade proteolítica no glúten, também encontramos cepas com essa mesma atividade nas proteínas da soja. Nossas cepas têm atividade proteolítica forte, tivemos sucesso em hidrolisar as gliadinas, como foi comprovado pelos métodos bioquímicos de checagem, e constatamos que essas cepas têm capacidade de hidrolisar as sequências responsáveis pela alergia ao trigo nas gliadinas, conforme demonstrado por métodos imunoquímicos”.
O projeto terminou em setembro de 2019, e agora o grupo busca financiamento para uma segunda etapa da pesquisa: o desenvolvimento de produtos (fermentos) com o glúten hidrolisado pelas bactérias láticas. El-Merchefi adianta que o glúten fermentado não vai eliminar ou fazer declinar totalmente o potencial alergênico. “Não é possível dizer que a fermentação vai eliminar toda a toxicidade do glúten para aqueles que são hipersensíveis a ele, mas esse processo pode contribuir para o declínio da toxicidade.”
Marcela Albuquerque deverá testar suas próprias cepas de bactérias láticas para verificar se consegue hidrolisar as proteínas do glúten e, durante o processo, checar se é possível minimizar a reação imunológica na presença de soro sanguíneo de pessoas alérgicas, onde há anticorpos IgE [nos indivíduos alérgicos às proteínas do glúten, o desencadeamento da reação imunológica é mediado por anticorpos IgE].
O interesse central da pesquisadora, no entanto, é verificar quais de suas cepas têm, além de atividade proteolítica forte, algum potencial probiótico. “Além de explorar a capacidade das bactérias láticas em degradar o glúten, e mais especificamente as gliadinas que causam problemas nos celíacos, também seria interessante verificar se elas têm algum potencial probiótico. Porque, se tiverem, pode ser um caminho, um adjuvante no tratamento para essas pessoas. Na verdade, hoje não existe um tratamento para os celíacos: o tratamento é manter uma dieta livre de glúten.”
Ela esclarece que a doença celíaca causa uma inflamação na porção delgada do intestino. “Mas se, de alguma maneira, for possível atenuar a reação inflamatória no intestino manipulando a reação imunológica dessas pessoas através do uso de bactérias láticas com potencial probiótico, o desenvolvimento de novos alimentos funcionais seria uma estratégia para beneficiar a saúde de indivíduos alérgicos ou celíacos.”
A pesquisadora escolheu os lactobacilos, bactérias que se ‘sentem confortáveis’ na porção delgada do intestino humano. “O raciocínio é: uma vez que se consegue mantê-los ali, o próximo passo seria verificar se podem proteger os celíacos contra a reação do sistema imunológico deles próprios frente ao glúten, uma vez que se trata de uma doença autoimune. Mas ainda não estamos no estágio de experimentos em nível clínico, estamos selecionando as bactérias e realizando testes in vitro para checar a atividade proteolítica e, posteriormente, o potencial probiótico.”
A bióloga isolou lactobacilos de amostras de diversos produtos fermentados: dois fermentos de trigo, kefir de leite, kefir de água, queijo artesanal de leite cru brasileiro (queijo canastra), e de uma outra amostra de queijo, obtida diretamente de um produtor, junto com a respectiva cultura bacteriana. “Obtive 600 isolados microbianos de 14 amostras; desses 600, tenho 28 potencialmente proteolíticos para glúten, sendo que quatro dos meus isolados tiveram resultado excelente. Agora precisamos verificar o potencial probiótico dessas cepas, in vitro.”
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