Selo Arte ainda é um sonho distante, apontam produtores de queijo artesanal

Presidentes de associações de produtores de queijo artesanal afirmam que é muito difícil atender a Lei Ministerial do Selo Arte, que visa reconhecer a artesanalidade dos seus produtos.

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30/03/2022 - Criada em 14 de junho de 2018 e regulamentada em 18 de julho de 2019, a Lei n° 13.680, conhecida como a Lei do Selo Arte, dispõe sobre o processo de fiscalização de produtos alimentícios de origem animal produzidos de forma artesanal, credenciando sua distribuição por todo território nacional. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), essa legislação pretende “realizar um antigo sonho de produtores artesanais de todo o Brasil”, pois “elimina entraves burocráticos” e garante a “segurança da artesanalidade e o respeito às boas práticas agropecuárias e sanitárias”. No entanto, na visão dos produtores brasileiros de queijo artesanal, o sonho ainda é apenas um sonho.

Para entender melhor os detalhes dessa lei, a Rede de Pesquisa em Queijos Artesanais Brasileiros (REPEQUAB) buscou ouvir a realidade dos produtores. Mesmo dois anos após sua regulamentação, o Selo Arte está presente em apenas 12 dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal. Os produtos credenciados são 233, pertencentes à quatro categorias: lácteos, cárneos, pescados e produtos oriundos de abelhas. Na categoria lácteos, há 199 produtos credenciados, com produtores com mais de um produto regularizado. De acordo com Christopher Faraud, presidente da Associação Paulista de Queijos Artesanais (APQA), esse número é irrisório, pois existem muitos municípios com mais de 30 produtores, mas até o momento existem apenas 43 queijos artesanais credenciados, dos quais 33 são de apenas quatro produtores. Em outros estados brasileiros, a situação é semelhante. Segundo Faraud, ainda falta muito para o Selo Arte ter relevância na produção artesanal brasileira.

O Ministério estima que há cerca de 170 mil produtores de queijos artesanais a serem cadastrados. Segundo a Dra. Marcella Alves Teixeira, coordenadora-geral de Produção Animal do MAPA, o processo de cadastramento está caminhando rapidamente, mas ainda há muito trabalho a ser feito. “São praticamente dois anos e meio de vigência da lei, ou seja, um espaço de tempo relativamente curto para avaliar os avanços. Temos feito um trabalho intenso junto aos estados na elaboração de procedimentos mais claros, que estimulem a adesão dos produtores”.

Por que a adesão é baixa? - Para João Carlos Leite, presidente da Associação Mineira de Produtores de Queijo Artesanal (Amiqueijo) e ex-presidente da Associação dos Produtores de Queijo da Canastra (APROCAN), o xis da questão está nos critérios de fiscalização. “Um dos problemas do Selo Arte é o cadastramento, porque a lei delega a inspeção sanitária aos estados, que têm critérios divergentes ou não têm ainda um serviço de fiscalização do queijo artesanal devidamente estabelecido. Isso dá margem para que os estados submetam os produtores aos mesmos parâmetros e processos de fiscalização da grande indústria láctea. Não se leva em conta que os queijos artesanal e industrial são produtos totalmente diferentes”.

Encabeçada majoritariamente por pequenos produtores, a grande maioria dos queijos artesanais é feita a partir do leite cru. Para sua fabricação, utiliza-se o leite recém-ordenhado, sem pasteurização, esterilização ou adição de produtos químicos, o que caracteriza a textura e sabor regionais únicos desses queijos. No caso de queijo de leite pasteurizado, procedimento utilizado para eliminar bactérias transmissoras de doenças, pode haver redução da quantidade e variedade de micro-organismos benéficos para o produto e para a saúde, como as bactérias lácticas, por exemplo.

Segundo os produtores, existe uma cultura no Brasil de que só queijo de leite pasteurizado é seguro, o que, segundo eles, não é correto. É preciso reforçar o investimento de pesquisa para desmistificar essa ideia. Faraud e Leite concordam com esses argumentos e acrescentam que o não cumprimento do Selo Arte força o produtor a trabalhar na ilegalidade: “por conta da fiscalização rigorosa, muitos não conseguem se adaptar e, com isso, vendem o queijo ilegalmente, sem inspeção alguma. Aí sim, nós temos um produto inseguro”.

MAPA rebate - Na visão da Dra. Teixeira, todos os processos de fiscalização são pautados na ciência e seguem o que está estabelecido na lei nº 1.283, de dezembro de 1950, atualizada pelo Decreto nº 9.013, de março de 2017, sobre a inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal. “A necessidade de inspeção é uma questão de saúde pública, temos que evitar a disseminação da tuberculose, brucelose e outras zoonoses. A nossa legislação, originalmente focada na produção industrial, foi ajustada ao longo dos anos para os estabelecimentos de pequeno porte. Sabemos que podemos simplificar a legislação, mas não podemos abrir mão de todos os requisitos de segurança”.

Teixeira acrescenta ainda que o MAPA está sempre aberto aos avanços da ciência. “Se existe alguma novidade que beneficie o produtor e também o consumidor, vamos avaliar. Provada a segurança para todos, o MAPA não se opõe, desde que exista comprovação científica bem fundamentada”.

Propostas de melhoria - Os produtores ouvidos nesta matéria, inclusive Faraud, defendem uma regulamentação e legislação própria para a inspeção dos queijos artesanais. Segundo Leite, “precisamos de uma lei de inspeção sanitária adequada à produção de queijo artesanal, com parâmetros microbiológicos e de controle de processo adequados. Quem pode ajudar nisso? A rede de pesquisa”. Teixeira também concorda com essa necessidade. Nesse contexto, a REPEQUAB e o Centro de Pesquisas em Alimentos (FoRC) da USP podem fazer importantes contribuições para subsidiar os produtores e os órgãos reguladores, a exemplo da parceria da REPEQUAB com produtores de queijo Canastra, em Minas Gerais, com vistas à segurança microbiológica e ao respaldo para a criação de uma legislação específica. Veja aqui alguns artigos científicos da rede.

Por mais que a inspeção seja o principal ponto de discordância entre os produtores e o governo, os presidentes da APQA e Amiqueijo concordam que a proposta do Selo Arte é boa e vem cumprindo seu papel. “As vendas dos produtores que receberam o Selo Arte estão melhorando bastante, como consequência do aumento da visibilidade dos seus produtos e possibilidade de comercialização em todo o país”, afirma o presidente da APQA. “Para o mercado consumidor de paladar refinado e poder aquisitivo alto, que valoriza os produtos artesanais, isso é fantástico. Agrega valor ao queijo e melhora a rentabilidade financeira do produtor. E o mais importante: preserva nossa identidade cultural e evita cópias”, conclui o presidente da Amiqueijo.



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