Rótulos de Kombuchas comerciais não podem trazer expressões como “bebida probiótica” e “bebida viva”

Você sabia?

03/06/2020 - Cada vez mais populares, bebidas que contêm microrganismos, popularmente chamadas de “bebidas vivas”, parecem ter entrado na dieta dos que buscam um estilo de vida mais saudável. Uma delas é o Kombucha, originado da fermentação de uma comunidade de fungos e bactérias que vivem em simbiose. Já há versões comerciais e até bares especializados na bebida, à qual são atribuídas características como, por exemplo, efeito probiótico. Entretanto, de acordo com a norma que estabelece o padrão de identidade e qualidade da bebida no País, os rótulos das marcas comerciais não podem trazer esse tipo de alegação.

À bebida têm sido atribuídos, tanto pela mídia leiga como pelo público consumidor, supostos benefícios como o fortalecimento do sistema imunológico, melhora da digestão, efeito antibiótico, efeito probiótico, ação estimulante, entre outros. De acordo com a bióloga Marcela Albuquerque, pós-doutoranda do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC – Food Research Center), para que esses benefícios supostamente decorrentes da ingestão da bebida possam ser comprovados são necessários estudos clínicos que consigam avaliar, por exemplo, a ação sobre o sistema imune, sobre indivíduos com problemas digestivos e pessoas alérgicas, assim como o potencial de provocar alergias em pessoas sensíveis.

“Além disso, eventuais benefícios também vão depender da pessoa que consome, de seus hábitos alimentares, do estilo de vida, do tipo de Kombucha que ela está ingerindo.... Há relatos científicos sobre os efeitos benéficos, mas não é porque a bebida contém microrganismos teoricamente benéficos, e seus metabólitos, que ela vai ter o mesmo efeito em todo mundo.”

Como a comprovação dos atributos da bebida requer mais estudos clínicos e pesquisas, uma Instrução Normativa (n° 41), publicada em setembro de 2019 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), proibiu que os rótulos das versões comerciais tragam expressões como: artesanal, caseira, familiar, bebida viva, bebida probiótica, bebida milenar, elixir, elixir da vida, energizante, revigorante, especial, premium, entre outras que atribuam qualidades superlativas e propriedades funcionais não aprovadas em legislação específica.

Marcela afirma que a exigência de estudos clínicos já é condição para que um produto possa alegar efeito probiótico desde 2018, segundo normas publicadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). “No caso do efeito probiótico, não basta um estudo in vitro demonstrando que o microrganismo tem tais e tais propriedades. É preciso provar que, além de sobreviver às condições do trato digestório humano e apresentar demais características probióticas, há evidência comprovada de seu efeito benéfico em humanos.”

Versão caseira – Embora o Kombucha já seja encontrado em sua forma comercial, a prática mais comum de obtenção da bebida ainda é o cultivo caseiro da colônia de microrganismos e sua fermentação artesanal. Na versão caseira, geralmente a pessoa ganha de um amigo ou parente um disco gelatinoso que contém os microrganismos e, a partir daí, começa a cultivá-lo. Esse disco é chamado de SCOBY – sigla para a expressão Symbiotic Colony of Bacteria and Yeast (Colônia Simbiótica de Bactérias e Leveduras).

“O cultivo é feito por meio da adição de chá a esse disco gelatinoso, geralmente chá verde, às vezes chá preto. Também se adiciona uma fonte de carboidrato, normalmente o açúcar refinado. E então o SCOBY começa a fermentar os nutrientes em temperatura ambiente, que aqui no Brasil é algo em torno de 25 °C e 26 °C dentro de casa (dependendo da região pode haver variação). O tempo de fermentação depende da temperatura de incubação. Depois, retira-se a bebida fermentada, que pode ser misturada com frutas, ou suco, ou outros alimentos, depende do sabor que a pessoa desejar. O SCOBY original dá origem a outro, que pode ser usado para outra fermentação, e assim a operação se repete e a comunidade de microrganismos vai se desenvolvendo”, explica Marcela.

Segundo ela, os microrganismos ficam no líquido fermentado, em suspensão, e não somente confinados na colônia SCOBY; por isso o Kombucha é considerado uma ‘bebida viva’, e daí os supostos benefícios atribuídos à saúde.
A pesquisadora ressalta que essas comunidades trocadas entre as pessoas são consideradas selvagens porque a composição microbiana de cada uma delas não é conhecida, ou seja: não se sabe quais os microrganismos presentes nos SCOBYs trocados entre os indivíduos, nem nas bebidas fermentados em casa, de forma artesanal.

Padrão e análise – De acordo com a bióloga, a composição microbiana de cada comunidade selvagem só pode ser conhecida por meio de análise. “Há várias ferramentas pelas quais se consegue determinar quais os grupos de microrganismos que estão presentes ali, quais as principais famílias. Consegue-se também saber qual grupo está em maior evidência e se ele é o responsável pela atribuição de promover o suposto efeito benéfico no organismo de quem ingere o Kombucha”, revela a bióloga, que atualmente está no Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), na França, estudando o potencial de bactérias láticas em reduzir a alergenicidade de proteínas vegetais.

Sem a realização de análise, além de não ser possível identificar os microrganismos presentes no SCOBY selvagem e na bebida artesanal, tampouco é possível identificar a presença de eventuais microrganismos não benéficos que podem, também, estar ali. “Acontece que esses produtos caseiros já são vendidos em pequenas feirinhas artesanais, onde se comercializa a bebida com a alegação de que é probiótica”, alerta Marcela.

Para ela, o principal problema de fermentar a bebida em casa é a segurança microbiológica. “É preciso controlar a matéria prima, os utensílios, a higiene na elaboração da bebida, o ambiente em que se está trabalhando... Se essa pessoa tem animais de estimação em casa, por exemplo, tem de ser ainda mais cuidadosa. É importante observar as boas práticas de fabricação, mas nem todo mundo as conhece. Em caso de manipulação inadequada em termos de higiene, pode ser que a pessoa adicione, a essa comunidade simbiótica, microrganismos que sejam patogênicos ou que produzam algum metabólito não desejável. É possível, por exemplo, provocar uma intoxicação alimentar. Claro que a bebida é ácida, e a acidez é uma barreira importante que contribui para impedir o desenvolvimento de microrganismos indesejados, mas não se deve contar somente com isso.”

De acordo com Marcela, depois da bebida pronta, qualquer pessoa pode procurar um laboratório e fazer uma análise de acordo com a legislação vigente, a RDC nº 331 de 23 de dezembro de 2019. “Provavelmente, o laboratório testaria a bebida para determinados patógenos, como a salmonela, e para Escherichia coli. Mas o indivíduo em casa não tem um protocolo de produção visando garantir padrões higiênico-sanitários adequados, e também não consegue assegurar que o processo fermentativo seja sempre realizado sob as mesmas condições, principalmente de temperatura. Assim, é impossível garantir que a bebida produzida hoje será igual àquela resultante da próxima fermentação. Na verdade, muito provavelmente não será.” Na ausência de um padrão, adverte a bióloga, mesmo que o indivíduo mande analisar sua bebida produzida em casa, o resultado dificilmente servirá como parâmetro para as próximas fermentações.

Macela acrescenta que, geralmente, as pessoas não têm uma estufa em casa, não controlam a temperatura de incubação e não têm como padronizá-la. “No SCOBY, há microrganismos que produzem ácidos orgânicos (lático e acético, por exemplo), e que podem gerar um produto mais ácido em uma semana mais quente e um produto menos ácido em uma semana mais fria – quando a bebida fermentou menos e mais lentamente. Há, ainda, microrganismos, como as leveduras, que são capazes de produzir álcool: é possível elaborar uma bebida mais ou menos alcoólica, por exemplo. E isso é difícil de controlar em casa.” Pela normativa do MAPA, a bebida é considerada alcoólica se contiver álcool acima de 0,5% v/v (volume por volume).

Já nas bebidas comerciais, sabe-se exatamente quais microrganismos estão presentes na formulação, sejam elas elaboradas com microrganismos de origem selvagem ou não. “No caso das bebidas comerciais, os produtores elaboram sua própria formulação. Eles podem fazer isso comprando microrganismos, já caracterizados e identificados, de empresas que os fornecem, ou isolando microrganismos de uma amostra selvagem”, detalha Marcela.

Marcela afirma, ainda, que pessoas que tenham a saúde debilitada como, por exemplo, pessoas imunodeprimidas, portadoras de linfoma e outras, e que requerem cuidados especiais devem evitar consumir bebidas oriundas dessas culturas selvagens. “Não se sabe como pessoas com alguma enfermidade irão reagir a essa fonte microbiana não identificada. Por mais que se saiba que o alimento tem uma tradição de ser benéfico, é preciso cuidado, sobretudo com os alimentos fermentados artesanalmente em casa. A não ser que estudos indiquem que o consumo é seguro e benéfico para esse tipo de pessoa, o melhor é evitar.” Pessoas que sofrem de gastrite também devem moderar no consumo, por conta da acidez da bebida.




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