Norma sobre matérias estranhas em alimentos é republicada sem grandes alterações

Procedimento faz parte do processo de revisão de normas, a fim de imprimir mais clareza aos regulamentos.

Políticas públicas e legislação

12/07/2022 - A Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) Nº 14, criada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2014, estabelece limites para a quantidade de matérias estranhas (não detectadas a olho nu) que podem ser encontradas nos alimentos, a exemplo de fragmentos de pelos de roedores, insetos, areia, filamentos de fungos e ácaros. Recentemente, essa norma foi revogada e republicada, agora sob o número 623. Mas afinal, o que mudou? “Somente a estrutura da regulamentação, porém sem alterações no conteúdo”, afirma Ignez Goes, gerente Técnico-Regulatória da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (ABIA).

Segundo ela, a atualização da norma foi feita a pedido do Governo Federal para atender ao Decreto 10.139/19, que prevê a revisão e a consolidação de atos normativos de diversos órgãos em conformidade com as exigências da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). De novidade mesmo, ela conta que em breve haverá uma atualização para a inclusão de requisitos específicos relativos à fécula e polvilho de mandioca e farinha de arroz, de acordo com a agenda regulatória da Anvisa prevista para ser finalizada em 2023.

De acordo com o site da Agência, o procedimento faz parte do processo de revisão de normas, a fim de imprimir mais clareza aos regulamentos. No dia 6 de julho, por exemplo, no Diário Oficial da União, foram publicadas 18 Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) e quatro Instruções Normativas (IN) relacionadas à regulação de alimentos. Esses 22 atos substituem 51 regulamentos que foram revogados. “Todas as alterações realizadas têm como objetivo aprimorar a redação e a forma dos atos normativos, de modo a imprimir mais clareza, sem alterar o mérito dos conteúdos. Ou seja, não foi realizada nenhuma alteração dos requisitos atualmente aplicados aos produtos abrangidos pelos regulamentos”, informa o comunicado. 

Necessidade de mudanças – Para Maria Marciano, pesquisadora e diretora do Núcleo de Morfologia e Microscopia do Instituto Adolfo Lutz, laboratório que realiza a fiscalização de matérias estranhas em conjunto com a vigilância sanitária, perdeu-se uma oportunidade de realizar melhorias nessa norma. “Nós ficamos um pouco frustrados porque achávamos que seria uma oportunidade de elucidar pontos da norma que causam controvérsias, de adequar limites e metodologias que foram publicadas com inconsistências, e de incluir classes de produtos similares aos que já constavam na RDC Nº14.”, afirma

Um exemplo é o fato de haver limites para matérias estranhas na farinha de trigo, enquanto não há limites para a farinha de trigo integral e para o farelo de trigo, que geralmente acumulam mais matérias estranhas. A nova norma, segundo a pesquisadora, também não trouxe nada de novo sobre a tolerância em relação a parasitos em peixes. “Hoje barramos muitos lotes do produto porque a legislação tem tolerância zero para parasitos, sendo que quando encontrados mortos, dentro de alguns limites, não oferecem riscos à saúde”.

Presença inevitável – Longe de ser uma ‘brecha’ para produtores e fabricantes mal-intencionados, o objetivo deste tipo de norma é garantir o acesso seguro de produtos pelo consumidor. “A RDC elenca os limites de tolerância para as matérias estranhas em alimentos, a maioria delas inevitáveis, de forma que o consumidor não seja colocado em risco”, afirma Goes. O fato é que não há como garantir a completa ausência desses fragmentos nos produtos. “Há fragmentos, principalmente os invisíveis a olho nu, que permanecem no alimento mesmo após todas as boas práticas higiênico-sanitárias”, explica ela.

Segundo Goes, as matérias estranhas são mais comuns em folhas, como ervas e especiarias, assim como em algumas frutas e legumes. “Em sua maioria, os fragmentos se originam em vegetações rasteiras. O tomate e seus derivados são alguns dos alimentos mais afetados. No seu caso, é inevitável a presença de pelos de roedores porque os animais passam pelas áreas de plantio, e trata-se de uma vegetação rasteira. Além disso, a colheita é mecânica, o que traz pedaços de terra, folhas, entre outras matérias. E a mesma terra é utilizada para o plantio de outros vegetais, como o milho, pegando também os fragmentos da plantação anterior”.

Limites: altos ou baixos? – Atualmente, a norma estabelece duas categorias em que produtores e fabricantes podem ser autuados: matérias estranhas causadas por falhas de boas práticas e aquelas de risco à saúde. Os limites, no entanto, se aplicam apenas para a categoria de falha de boas práticas, enquanto na categoria de impróprio para consumo nenhuma presença de matéria estranha é permitida.

São exemplos de limites de matérias estranhas de falhas de boas práticas: um fragmento de inseto por grama de produtos de panificação (sem que exceda 225 fragmentos na alíquota de 225 gramas); 300 fragmentos de insetos, cinco insetos inteiros próprios da cultura, dois fragmentos de pelo de roedor e 15 ácaros mortos em 25 gramas de chá de hortelã; fora os cinco ácaros tolerados em qualquer alimento, inclusive água mineral. “A presença desses fragmentos, nessas quantidades, não é considerada prejudicial à saúde, embora possa causar repugnância ao consumidor”, afirma a pesquisadora do Instituto Adolfo Lutz.

Em sua avaliação, o cerne da questão é outro. “A indústria, como um todo, busca aumentar esses limites, mas muitos deles já são altos. Exemplo disso são os limites propostos para chás, a exemplo do boldo que permite 70 fragmentos de bárbulas de ave (penas), além de dois fragmentos de pelos de roedor, cinco ácaros e 75 fragmentos de insetos, em 25 gramas”, diz.

Para ela, os esforços deveriam ser concentrados no desenvolvimento de tecnologias que viabilizassem diminuir cada vez mais esses limites, estreitando o cerco sobre o controle de matérias estranhas pelo setor produtivo. “Com o avanço das tecnologias, a tendência é que os limites se reduzam cada vez mais, que as medidas de boas práticas sejam intensificadas, garantindo a integridade e qualidade, desde a seleção das matérias-primas até as condições de armazenamento e distribuição”, aponta Marciano.

O acúmulo de matérias estranhas, segundo a pesquisadora, também acontece devido à má qualidade das matérias-primas utilizadas pelos fabricantes. “As empresas que estão comprometidas com as boas práticas conseguem atender os limites. Mas há empresas que usam matérias-primas de qualidade inferior, que comprometem o produto final, por conduzirem a um alto índice de matérias estranhas, difíceis de serem retiradas”, acrescenta Marciano.

De todo o modo, essa norma técnica, por mais que ainda precise ser aprimorada, garante que a saúde do consumidor não esteja em risco. Já para o setor produtivo a norma traz segurança fiscal. “Antes da RDC 14 vigorar, a indústria era autuada pela vigilância após a fiscalização emitir laudos de produtos insatisfatórios, o que acontecia quando os produtos apresentavam qualquer matéria estranha, independentemente da quantidade”, conta Marciano. Ou seja, há limites claros para a presença de matérias estranhas nos alimentos.

Parâmetros dos limites — De acordo com Goes, quando foi criada a RDC 14, os limites foram discutidos entre diversos especialistas e instituições, inclusive as que representam os produtores de alimentos e a Anvisa, além de contar com a participação da sociedade civil. “O processo de publicação de uma normativa pela Anvisa conta com ampla discussão entre as associações e os produtores interessados, além de uma consulta pública, disponibilizada por no mínimo 60 dias, em que a população emite suas contribuições e argumentações sobre a temática”, explica Goes. “Nos dois primeiros anos, o limite costuma ser mais alto. Ele vai sendo reduzido conforme os produtores vão se adequando, por isso é importante um prazo adequado para implementação das normas”, complementa.

A definição das medidas leva em conta também referências internacionais. “São avaliadas as principais normas internacionais. Ao redigir a norma, avalia-se quais os limites na União Europeia, nos Estados Unidos, entre outros locais, e se isso se adequa à realidade dos nossos produtores. Vale destacar que todas as decisões são pautadas pela ciência e visam à segurança do consumidor.”

Esse processo não ocorreu na RDC 623, por se tratar de uma atualização na redação da norma, sem alterações no conteúdo. “Não participamos do processo de elaboração da nova legislação, por mais que algumas normas tenham sido simplificadas. Na época, recebemos um comunicado informando da revogação e da vigência de uma nova norma, um pouco antes dela ser promulgada. Cheguei até a mandar um e-mail para a Anvisa com o intuito de sugerir alterações, mas fui informada que não seria possível naquele momento”, aponta Marciano.

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