Comer fora ou em casa, o que é mais seguro?

Devido à subnotificação, ainda não é possível elucidar essa questão, mas há indicações de quais segmentos da população brasileira são mais vulneráveis e quais os principais problemas a serem atacados, mostra pesquisa do FoRC.

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26/04/2023 - As pessoas mais suscetíveis às doenças transmitidas por alimentos (DTAs) são aquelas de baixa renda, crianças menores de 5 anos, os imunocomprometidos e os idosos. Já os alimentos de composição mista, feitos com alimentos de origens diversas, são o principal veículo de transmissão dessas doenças, provocadas principalmente pelas bactérias Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Salmonella spp e Bacillus cereus. Essas conclusões fazem parte de uma revisão bibliográfica feita por pesquisadores do Centro de Pesquisa em Alimentos da Universidade de São Paulo (Food Research Center – FoRC-USP).

Ao analisarem dados de órgãos de vigilância sanitária e artigos científicos sobre doenças transmitidas por alimentos notificadas internacionalmente, eles buscavam responder a uma pergunta: o que é mais seguro: comer em casa ou fora? “Por causa da subnotificação ou da heterogeneidade de dados, não conseguimos responder a essa questão com exatidão, mas levantamos informações relevantes sobre o problema no Brasil e pudemos compará-los com os de outros países”, afirma o coordenador do estudo, o professor Uelinton Pinto, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP) e pesquisador do FoRC.

Subnotificação generalizada – Um dos gargalos, segundo o estudo, é a subnotificação, que ocorre de maneira generalizada nos diversos países estudados. “No Brasil e em outros países, um caso só aparece nas estatísticas quando ocorre um surto que acomete muitas pessoas ou quando há hospitalização por determinadas doenças de notificação compulsória, como o botulismo e o cólera. Os casos leves não são registrados porque não chegam nos hospitais. E muitas vezes, mesmo quando há hospitalização, o caso pode não ser devidamente associado a uma origem alimentar”, afirma o professor.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que anualmente ocorram cerca de 600 milhões de casos de DTA no mundo, gerando 420 mil óbitos devido ao consumo de alimentos contaminados por agentes patogênicos, como bactérias e suas toxinas, vírus, parasitas e outras toxinas de origens diversas. Esses dados são estimativas globais que tentam levar em consideração a questão da subnotificação, mas os números reais são muito difíceis de serem obtidos.

Quando se fala de surtos notificados aos órgãos de saúde dos países, os números são muito menores, já que é muito difícil conseguir os dados epidemiológicos relativos às doenças. No mundo, os locais com mais notificações são a União Europeia, com 49.463 casos em 27 países afiliados (2019); a China, com cerca de 21 mil casos por ano (2003-2017); os EUA, com a 15 mil registros anuais (2009 e 2015), e o Brasil, com cerca de 12 mil casos registrados (2009 e 2018). Mas esses números são a ponta do iceberg. Só nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que haja pelo menos 48 milhões de casos de doenças transmitidas por alimentos (DTAs) por ano, embora os dados oficiais do Center for Disease Control and Prevention (CDC) estejam na casa de milhares.

Risco à saúde pública – “O problema é que sem uma dimensão real dos casos não há como direcionar as políticas públicas e alocar recursos onde é prioritário”, afirma o professor. Além disso, trata-se de um problema de saúde pública de grande impacto. “As doenças transmitidas por alimentos são uma das principais causas de morbidade e mortalidade em todo o mundo, além de causarem prejuízos significativos com gastos em saúde, perda de produtividade devido a afastamentos e impacto nos negócios afetados”, destaca.

Na maioria dos casos, as doenças resultam em gastroenterite – irritação e inflamação do tubo digestivo que causam diarreias, dores abdominais, náuseas e vômitos, entre outros sintomas. “Em indivíduos com o sistema imunológico comprometido, isso pode evoluir para um quadro pior de infecção, podendo levar à desidratação grave e ao óbito. Em casos mais graves, algumas bactérias podem causar doenças mais invasivas, como problemas renais, infecção generalizada, meningite, entre outras inúmeras complicações”, exemplifica.

Foco do problema – Segundo a Organização Mundial da Saúde, 80% das doenças nos países em desenvolvimento são transmitidas pela água não potável, incluindo as veiculadas pelos alimentos. No Brasil, quase 35 milhões de pessoas não têm abastecimento de água tratada. A região Norte do país é a que apresenta o pior cenário: pouco mais da metade da população (57,5%) tem acesso a água potável. “Se o saneamento básico é precário, por mais que se cozinhe utilizando todas as práticas de higiene indicadas, os riscos de a contaminação vir pela água são grandes”, afirma.

Percepção equivocada – “No Brasil e em muitos outros países, como os Estados Unidos e a China, o manuseio inadequado é apontado como uma das principais causas de surtos de DTAs em serviços de alimentação comercial, institucional e em casa”, afirma o professor. Em casa, a percepção errônea em relação aos perigos microbiológicos leva boa parte dos brasileiros a ter hábitos equivocados, como descongelar alimentos fora da geladeira; reaquecer alimentos cozidos em tempo e temperatura insuficientes; ou usar os mesmos utensílios – sem a devida higienização – para manipular carnes e depois vegetais que serão servidos crus, por exemplo.

Dentre os problemas que podem ocorrer nos estabelecimentos comerciais, além de ausência de boas práticas em manuseio e conservação, podem ser citados: infraestrutura precária; falta de fiscalização, ausência de controle de temperatura dos alimentos expostos; baixa qualidade das matérias-primas; e exposição dos alimentos a insetos e poeira. Uma pesquisa brasileira com vendedores ambulantes, por exemplo, revelou que apenas 53% e 23% tinham condições satisfatórias de higiene das mãos e superfícies, respectivamente. “Vale lembrar que no Brasil também há uma proliferação das dark kitchens, favorecida pela facilidade de registro em plataformas digitais, que podem ter higiene insatisfatória, desrespeitando as normas dos órgãos de vigilância sanitária.”

Dados questionáveis – Dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan) apontam que no Brasil 37,7% dos surtos de DTA ocorrem dentro de casa, enquanto 15,1% nos restaurantes, 11,0% em outros serviços de alimentação, 10,7% no trabalho ou em alojamentos, 9,1% nas escolas, 5,2% em eventos como festas e festivais de música, e o restante dividido entre estabelecimentos de saúde e outros serviços. Isso sugere que seria mais seguro comer fora do que em casa. No entanto, há um número maior de casas comparado ao de restaurantes. “Esses dados podem estar refletindo somente os casos notificados; portanto, não espelhando a realidade”.

Outros dados questionáveis são os relativos ao período pandêmico. De acordo com o Sinan, o número de casos notificados caiu durante a pandemia da covid-19. Entre 2019 e 2020 houve uma queda de 60%; em 2021, outra de 8%. “Pode ter havido maior subnotificação pelo fato de os sistemas de saúde estarem sobrecarregados, com menor capacidade de atender e notificar os casos”, pondera Pinto.

“Nossa pesquisa mostra a importância de haver um melhor rastreamento dos casos e os gargalos que precisam ser atacados para diminuir a incidência dessas doenças”, afirma o professor. “E, em resumo, indica que água potável, saneamento básico, orientações sobre boas práticas de manuseio e de conservação dos alimentos, e fiscalização efetiva são essenciais para diminuir a incidência das DTA no Brasil”, finaliza.

Um artigo sobre a pesquisa, intitulado Food Safety Issues Related to Eating In and Eating Out foi publicado na revista Microorganisms. O estudo contou com a contribuição das professoras Bernadette Franco e Mariza Landgraf, ambas integrantes do FoRC e do ILSI (Institute of Life Sciences), e das pesquisadoras Adriana Gargiulo, Stephany Duarte e Gabriela Campos, alunas de pós-graduação da FCF-USP.

Raio X dos principais causadores de doenças alimentares no Brasil

Escherichia coli: trata-se de um grupo de bactérias comensais que habita o intestino humano e de alguns animais, portanto, normalmente não causa doenças. Entretanto, existem seis tipos de E. coli que podem causar doenças. Entre eles, as E. coli produtoras de toxina de Shiga (STEC – Shiga toxin producing E. coli) são as mais preocupantes. Estas E. coli patogênicas são geralmente transmitidas por meio de alimentos não processados, água não tratada ou durante a manipulação do alimento com práticas insatisfatórias de higiene (contaminação por fezes). Os alimentos mais afetados são carne e leite crus ou malpassados e vegetais crus. As infecções afetam o intestino, mas podem causar doenças mais invasivas, como problemas renais, entre outras complicações. Vale ressaltar que os dados do Brasil não trazem informações sobre quais os tipos de E. coli foram encontradas nos surtos e isso é um ponto a ser esclarecido.

Staphylococcus aureus: trata-se de uma espécie de bactéria presente em diversos ambientes, inclusive é habitante natural da pele de cerca de 1/3 da população. Entretanto, se presente em altos números nos alimentos, pode produzir enterotoxinas. A contaminação dela nos alimentos ocorre pela manipulação inadequada, falta de higiene pessoal ou armazenamento em temperaturas incorretas. Carnes e derivados, frangos, pratos com ovos, atum, presunto; macarrão e produtos de panificação são alimentos associados à intoxicação. A intoxicação é normalmente autolimitada e se resolve em um a dois dias.

Salmonella spp: dispersa no meio ambiente, a transmissão dessa bactéria para o homem ocorre quando se come alimentos crus ou malpassados ou quando não se lava as mãos antes de cozinhar ou de manipular alimentos. Alimentos mais susceptíveis são os que possuem altos teores de umidade, de proteínas e carboidratos, como carne bovina, suínos, aves, ovos, leite e derivados, frutos do mar. A infecção conhecida como salmonelose é uma gastroenterite típica que geralmente fica restrita à mucosa intestinal, mas pode haver casos mais graves que causam uma série de complicações, podendo levar a morte.

Bacillus cereus: o solo é seu habitat natural, mas essa bactéria pode contaminar uma série de produtos alimentícios. Existem duas formas da doença: uma emética (que causa vômitos) e a outra diarreica, dependendo da cepa de B. cereus que contaminou o produto. Cereais, laticínios, carnes derivados, alimentos desidratados e especiarias são alguns dos alimentos associados às intoxicações.

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