Cheiro de ‘estábulo’ e gosto estranho no leite? São as enzimas de bactérias psicrotróficas em ação

Elas são chamadas de bactérias psicrotróficas porque se desenvolvem em temperaturas de refrigeração. Suas enzimas resistem à pasteurização e ao tratamento de temperatura ultra-alta (UHT) e não são fiscalizadas pela legislação.

Você sabia?

09/01/2023 - Você já sentiu um gosto ou um cheiro estranho no leite? Uma sensação de sujeira ou de madeira? Isso não é tão raro quando se tem um leite de má qualidade. E pode acontecer em produtos UHT, os famosos leites de “caixinha”. O motivo por trás disso, geralmente, é a contaminação do leite no campo, nas fábricas e a incapacidade do processo de esterilização comercial de inativar enzimas de bactérias, principalmente as psicrotróficas, como Pseudomonas e Serratia.

O tratamento UHT (Ultra High Temperature — Temperatura Ultra-Alta, em tradução livre do inglês para o português) é capaz de matar todo o contingente de bactérias deterioradoras do leite, mas falha ao eliminar completamente as suas enzimas, que são estáveis e resistentes ao calor e por isso se mantêm ativas. Enzimas são proteínas capazes de provocar reações químicas, como a quebra de moléculas de proteína e gordura. A presença dela afeta negativamente o odor e o sabor do produto, e pode resultar em uma textura gelatinosa caso se apresentem em grande quantidade.

“As ‘pegadas’ das bactérias continuam no leite UHT porque as suas enzimas proteolíticas e lipolíticas resistem ao tratamento pelo calor. Essas enzimas agem na degradação da proteína do leite em um processo chamado de proteólise, que causa problemas de coagulação e sobre os lipídeos, gerando o gosto estranho. Essas alterações são percebidas pelo consumidor e mudam o sabor ‘original’ do leite, explica Maria Cristina Dantas Vanetti, professora do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Viçosa.

“É percebido gosto e odor que remete a sensação de sujeira, como que provenientes do próprio animal e do estábulo. No entanto, a ação das bactérias psicrotróficas no leite, com raras exceções, não confere riscos à saúde”, afirma. Outro problema é o rendimento na produção dos queijos, que também é afetado, pois as enzimas proteolíticas degradam a caseína, a maior responsável pela formação do coágulo para a fabricação do queijo. “A atividade de bactérias proteolíticas no leite destinado à fabricação de queijo pode levar a prejuízos em até 5% de rendimento do queijo.”

Esse problema tem relação com as condições de higiene em que o leite cru é obtido e a forma e o tempo de armazenamento, já que as bactérias psicrotróficas, por definição, são bactérias capazes de se multiplicar em temperaturas baixas. Promulgada em 2011, a Normativa 62 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) determinou que o leite recém-ordenhado fosse refrigerado até 7° C na propriedade rural e transportado até a indústria em uma temperatura inferior ou igual a 10° C. Na Instrução Normativa 76, publicada em 2018, os limites para estocagem foram alterados para 4° C em postos de refrigeração e para 7° C no transporte.

“Ao estabelecer a refrigeração imediata do leite após a ordenha, a legislação visou controlar a multiplicação de bactérias mesófilas, que eram as principais produtoras de ácido no leite cru. Mas temperaturas baixas permitem o desenvolvimento de bactérias psicrotróficas que têm, como característica, a produção de enzimas proteolíticas e lipolíticas. Embora essas bactérias se proliferem de maneira mais lenta, quanto maior o tempo de refrigeração, maiores as chances de suas enzimas serem produzidas.”

O problema se dá principalmente com o leite UHT por causa do longo prazo de validade. Uma vez embalados, eles podem ficar nas prateleiras por três a quatro meses. Isso é tempo suficiente para que as enzimas alterem o produto. Nos chamados leites pasteurizados, conhecidos como leites de “saquinho”, a ação dessas enzimas ocorre com menor frequência porque esse tipo de leite tem uma validade menor, de 5 a 15 dias.

Problema estrutural – A principal dificuldade para conter a contaminação do leite por bactérias psicrotróficas é a não adoção das boas práticas de produção nas propriedades leiteiras. Além disso, a demora na entrega do leite, por causa das longas distância do campo até a indústria, faz com que o leite fique armazenado por longos períodos nas propriedades até que seja pasteurizado.

 
No Brasil, grande parte do leite ainda é produzido por pequenos produtores, muitas vezes sem estrutura necessária ou em desacordo com as exigências de higiene e controle de qualidade. “É necessário a adoção de normas básicas relativas à saúde animal, higiene do ambiente durante os procedimentos de produção do leite, como higienização das mãos, qualidade da água, uso correto dos equipamentos e condições de armazenamento.” Nesse contexto, seria necessário traçar uma política pública capaz de prover a capacitação financeira e educacional desses profissionais.

 

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